quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Tia Geralda

Tia Geralda nasceu e sempre viveu entre a vila de Capivari da Mata e a cidade de Ituverava.
Foi a penúltima dos onze filhos da vovó Tonha.
Depois de casada com tio Chico, nunca mais saiu das terras que passaram a viver, nem depois da morte dele, em 1970, ano em que nasci.
Portanto não cheguei a conhecê-lo, mas conheci muito bem a tia Geralda.
Enquanto criança e no começo da adolescência, passei boa parte das minhas férias naquele sítio.
Inclusive, quando digo para algumas pessoas que eu me criei na roça, foi devido a todas aquelas estadas.
Ela sempre nos recebeu com muita alegria e, apesar da vida simples, ela era muito rica em felicidade.
A nossa Variant azul, carregada de gente, ao adentrar a porteira daquelas terras sempre era bem vinda.
Me lembro bem de uma cena comum: o meu pai chegava buzinando para espantar os cachorros, parava o carro e a minha vó Zilda (irmã da tia Geralda) descia rapidamente. Da casa, saía tia Geralda, debulhando uma espiga de milho e as duas se encontravam no meio de uma multidão de galinhas e frangos, onde a minha avó sempre escolhia aquela que ela gostaria de ver na panela durante o almoço.
E só depois disso, é que elas se cumprimentavam...
Se abraçavam gostoso, como se uma vida inteira as tivessem separado.
Sempre era assim, a ponto de eu já saber mais ou menos o frango que seria escolhido pela minha vó.
Não tinha energia elétrica lá.
Mas, nem precisava, pelo menos para mim, é claro.
E olha que eu adorava ver televisão. Mas, nunca senti falta, na casa dela.
Eu gostava de passear à noite, com as lamparinas e ver a sombra que produziam nas paredes da casa. Gostava de ver o vulto das pessoas conversando ao redor do fogão à lenha. Algumas feições se modificavam. O cigarro de palha do primo Francisco (filho da tia Geralda), que insistia em se apagar, as modas de viola no rádio a pilha, o bolinho de polvilho frito em óleo bem quente e as boas histórias que eu ouvia, ainda são bem fortes na minha memória.
Histórias, inclusive, que eu acreditava. Principalmente se fossem contadas para me assustar.
Como a do lobisomem que correu ao redor da casa, a da mula sem cabeça que aparecia em noites claras, aquela do choro de criança na mata, próxima do rio, da porteira que abria sozinha ou de aparições de pessoas que já morreram.
É claro, que eu jamais me aventurava fora da casa, quando escurecia.
Com aqueles olhinhos azuis, escondidos sob as lentes grossas dos seus óculos é que ela me mostrava grandes lições de paciência e afeto.
"Deixa o menino...", era a frase que eu mais escutava, quando as pessoas insistiam em achar que as minhas perguntas e peraltices, atrapalhavam a rotina do sítio.
Foi lá que eu vi, o meu avô Antônio construir um paiol de madeira, sem usar um prego sequer.
Que aprendi um pouco de física também, ao descobrir o engenhoso sistema de abastecimento de água, que trazia o precioso líquido da mina, localizada a dois quilômetros de distância para dentro de casa, utilizando-se somente da força da gravidade, via declividade do terreno.
Era uma água fresquinha e boa, que passava por uma torneira, que eu insistia em fechar, mas que sempre deveria ficar aberta, para servir também às galinhas, no quintal.
Foi lá que também me ensinaram a andar a cavalo.
Colocava-se um tapete e uma corda em um pangaré bem mansinho, que era usado para puxar carroça, que eu me sentia um cavaleiro medieval ou um mocinho de filme de bang-bang.
Geralmente, andava com a minha irmãzinha na garupa.
Inclusive, protagonizei uma dessas histórias de assombração, quando estava com a Eliane, a minha irmã do meio, andando em uma égua com seu potrinho do lado, em uma estrada, fora do sítio.
Sem motivo aparente ela empacou, o potrinho ficou muito agitado e, juro por Deus, ouvimos uma voz distante gritar: "desce dessa égua, seus burros..."
Após uma gargalhada estridente o animal saiu em disparada, só parando na porteira do sítio.
Todos riram, quando eu contei, mas até hoje, ainda não consegui explicar o que aconteceu.
Eu adorava pescar no ribeirão. Sempre pegava uns lambaris, que eram bem limpos, passados no fubá e fritos em óleo bem quente.
Todos comiam, menos eu.
Enquanto criança, fui muito enjoado para comer e não adiantava dizer isso para a tia Geralda, pois ela pensava que eu não gostava da comida dela.
Na realidade, tirando o que a minha mãe fazia (e só algumas coisas) eu não gostava da comida de ninguém.
Felizmente não sou mais assim, mas a tia Geralda nem ficou sabendo disso.
Porque depois da adolescência, nunca mais voltei para lá.
E ontem fiquei sabendo que ela nos deixou.
Ao chegar no céu, deve ter sido bem recebida.
- "Entra, Geralda, entra..."
E eu nem consegui me despedir e lhe agradecer, pois parte do que sou, foi o que eu vivi no "sítio da tia Geralda".
Obrigado, tia...

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