terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Quarenta e oito horas

A minha primeira e única viagem do Nordeste para São Paulo, foi muito marcante.
Tão marcante que eu nunca mais me arriscarei em tal empreitada.
Começou em Serra Talhada, pequeno município pernambucano, lá pelos idos dos anos 90, do século passado (parece coisa bem antiga mesmo, quando se diz "no século passado"...).
E como não poderia ser diferente, a bordo de um Tribus convencional da Itapemirim, sem ar condicionado.
Ao entrar no ônibus, percebi que ele vinha de outras cidades, já que muitas poltronas já estavam ocupadas.
Assim, conheci logo de cara o meu companheiro de viagem, ou seja, a pessoa que teria que passar dois intermináveis dias ao meu lado.
Antes de embarcar, fiz aquele tradicional jogo de advinhação, tentando imaginar a pessoa que sentaria na outra poltrona, ao meu lado.
É óbvio, que pensei em uma loira oxigenada, com dotes louváveis e muita carência.
Errei com alguma distância, pois ao andar pelo corredor, percebi que quem ocupava a poltrona da janela era um rapazinho magrelo, com jeito de matuto (no decorrer da viagem, fiquei sabendo que ele nunca tinha saído de sua terra natal).
Fui recebido com um gesto cortês, logo nos apresentamos e, como primeira impressão, achei que não seria tão ruim assim.
Após os acenos tradicionais de despedida, com o movimentar do ônibus, resolvi "puxar assunto".
Disse que o dia já começara quente e, para o meu azar, eu tinha esquecido de comprar água para a viagem.
Juro por Deus, que eu nem estava com muita sede e sabia que a próxima parada seria em Arcoverde, umas duas horas dali.
Era só para iniciar uma conversa mesmo!
Mas, para a minha surpresa, o rapazola me mostrou que estava prevenido, pois trazia uma garrafa cheia d'água.
E, claro, me ofereceu.
Gelei, pois ao me mostrar o precioso líquido, com a cor um pouco alterada (juro que era um marrom bem clarinho), não pude disfarçar a minha reação de reprovação.
Por não aceitar, praticamente o ofendi, já que ele me garantiu que era limpa, algo que não tive coragem de contestar, mas reforcei que eu estava "sem muita sede" (e mesmo que estivesse, jamais eu confirmaria...).
Começara mal a "minha odisseia"...
Algum tempo depois o matutinho desamarrou a cara e voltou a prosear comigo, me mostrando algumas plantas que iam passando pelo caminho.
Já esquecido da mágoa, me ofereceu um pedaço de doce de jaca, fartamente cortado pelas suas mãos e com o polegar afundado naquele pedaço meio esverdeado (essa é a cor de verdade, dessa iguaria).
Puxa vida, eu já tinha recusado um gole d'água e, se eu não aceitasse aquele pedaço de doce, acho que não passaria vivo nem de Recife, pois a oferta foi feita de maneira bem impositiva.
Ao aceitar, pus em risco perder o controle natural das minhas funções intestinais, mas ganhei um "companheiro de viagem", um amigo que não mais se constrangeu com qualquer grosseria minha.
Dia se acabando, novos embarques e, em poucas horas, eu já conhecia boa parte dos passageiros do ônibus.
Inclusive aquele sentado na última fileira de poltronas, com um rádio enorme, que tocava no mais alto volume uma mesma fita cassete, gravada em alguma seresta de um barzinho chinfrim, em alguma cidade minúscula do agreste pernambucano.
Vocês não vão conseguir entender o quanto eu gostava daquilo. Imaginem um desafinado cantor que, junto a um teclado mal programado que ele provavelmente não sabia tocar, cantava alguns sucessos sertanejos do momento (isso mesmo, sertanejos).
Provavelmente o show foi gravado pelo mesmo rádio que o reproduzia (lembro novamente, em altíssimo volume), dentro do ônibus.
O impressionante é que o cassete (leia-se K7, por favor) só possuía uma meia dúzia de músicas, quase monorrítmicas.
Noite vem, dia amanhece, depois de esgotada a paciência de quase todos os passageiros, resolveram esconder a radiola do sujeito no bagageiro do ônibus, em uma das paradas.
Ao retornar para o mesmo, o nosso DJ, ficou inconformado ao não encontrar o seu precioso companheiro.
Gritou, esbravejou e só conseguiu que contássemos o ocorrido, após ameaçar todo mundo com a "peixeira" que dizia trazer na bagagem.
Se estava ou não armado, eu nunca descobri (juro que pelo silêncio, até "pagava para ver"), pois o motorista resolveu acabar com a bagunça, devolvendo o rádio para o nosso algoz.
Para evitar novas reproduções dos martirizantes sucessos da seresta (ele disse que era a única fita que trazia), fizemos ele concordar em comprar uma nova, na parada seguinte.
Não demorou muito e chegamos em Vitória da Conquista.
Nesse ponto de apoio, existia um vendedor ambulante que tinha todos os gêneros musicais e cantores à disposição, em boas cópias genéricas.
Fizemos "uma vaquinha" e pedimos que o nosso valente passageiro, fizesse a escolha de uma delas.
Ele ficou com uma do Roberto Carlos.
Voltamos para o ônibus, com a esperança de ouvir alguns bons e antigos sucessos do rei, mas, infelizmente, era aquela fase das homenagens.
O Roberto fazia música para os caminhoneiros, solteiras, gordinhas, etc.
E, tinha sido comprada a fita com a "música da gordinha".
O camarada só escutava essa música. Ia e voltava várias vezes, na mesma faixa.
"(...)Coisa bonita, coisa gostosa, quem foi que disse que tem que ser magra para ser formosa?(...)"
Confesso que preferia o tecladinho do outro cantor que ele trazia.
A nossa sorte foi que ele conseguiu atrair a atenção de uma jovem senhora, que o distraiu no restante da viagem, fazendo-o esquecer um pouquinho daquela "caixa de abelhas" que reproduzia o melhor da nossa MPB.
E nem agradeci a aquela heroína por tal feito...
Quando a viagem já se encaminhava para a sua segunda metade, com o calor quase insuportável e o balanço inconveniente do veículo, devido à quantidade exagerada de buracos nas estradas, a molecada resolveu aprontar.
Os diabinhos resolveram fazer uma guerra de siriguelas maduras, dentro do mesmo.
O cheiro da fruta, somado ao odor característico do banheiro sem limpeza (e muito usado), produziu um aroma indescritível.
Resultado disso tudo: chegando em Teófilo Otoni, eu peguei parte da bagagem e disse ao motorista que iria desembarcar ali mesmo.
Fui convencido a voltar para o ônibus e Minas Gerais perdeu um pretenso habitante, pois se eu descesse, nunca mais voltaria a entrar em nenhum outro meio de transporte coletivo terrestre.
Mas, depois de mais de quarenta e oito intermináveis horas, consegui desembarcar no terminal rodoviário de São Paulo.
E, ao ser recebido pelo cheirinho característico do Rio Tietê, pela enfumaçada cidade e pelo trânsito caótico da Marginal, me deu um pouquinho de saudade daqueles dois dias...

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