quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O professor

Timóteo era daqueles professores tradicionais.
Lecionava desde os tempos idos no grupo escolar de um bairro central da cidade.
Muito metódico e correto, sempre fora um defensor da moral e da ordem.
Tinha iniciado a carreira ainda na fase da palmatória, mas se adaptou sem muitas dificuldades às mudanças pedagógicas impostas pelo "correr dos anos".
Era um professor querido, já que estava dando aula para a terceira geração de alunos.
Nos tempos da ditadura foi ferrenho defensor das ideias da tradição, família e propriedade e, nos tempos de democracia, discute se são verdadeiros os benefícios dessa total liberdade de expressão.
Mesmo com essa característica um pouquinho reacionária, não deixava de ser querido, mas tinha uma vontade imensa de interagir melhor com todos.
Próximo da aposentadoria, encarou um desafio único.
Sentindo-se um pouquinho sozinho, pois continuava solteiro e com raros amigos, já cansado de sempre frequentar os mesmos lugares, sem companhia alguma, resolveu dar uma repaginada no seu visual.
Deixou de lado as calças de tergal, sempre engomadas, as camisas de linho, muitas com pequenos remendos nos fundos do colarinho, aquele sapatinho preto de amarrar e, mudou o seu guarda roupa.
Comprou tênis, um jeans de bolsos baixos e lavagem radical, camiseta de marca conhecida, com a foto do Elvis estampada e até um boné de grife de lutador de jiu-jitsu para esconder a sua calvície.
Para verificar o impacto do novo visual, resolveu ir até o centro da cidade para dar uma volta pelo local.
Pegou o ônibus no seu bairro e começou a perceber que as pessoas já haviam notado a diferença, pois o olhavam mais do que sempre ele já tinha visto.
Sentou-se no último banco e se pôs a imaginar como um novo homem.
Quem sabe não conseguiria chamar a atenção de uma jovem senhora, para poder dividir um pouco da sua sabedoria e solidão.
Em uma das paradas do ônibus, viu subir uma mulata de quase dois metros de altura, com um maravilhoso corpo modelado em uma calça tão colada, que parecia ter nascido dentro dela, equilibrando-se em um salto agulha e uma blusinha justíssima.
A moça ao passar na roleta, pelo cobrador, percebe a sua presença e ergue a sobrancelha.
Faz do corredor do coletivo uma passarela e vai caminhando lentamente, com olhar fixo para o Timóteo e, ao se aproximar, abre o sorriso mais lindo do mundo.
Minha nossa, apesar de ser bem mais nova que ele e ter a aparência de rainha da bateria de escola de samba, ela o encarava. Quem sabe, o seu novo visual não tinha mesmo, o repaginado.
Esse novo homem abre também um sorriso receptivo, encantado com tamanha beleza, oferecendo o banco do lado à aquela linda mulher.
Ah, era mesmo o seu dia, pois ela senta ainda sorrindo e, antes de receber alguma cantada ou elogio, tasca de maneira direta:
- "Oi, tio, tá lembrada de mim? Fui sua aluna na quarta série? O senhor tá diferente, hein! Tá aposentado?"

"Timão, todo poderoso timão"

Ontem, fui convidado por um grupo de amigos corintianos para assistir o jogo do time deles contra o Bragantino.
Jogo de uma única torcida, Ronaldo e Roberto Carlos em campo, não pensei duas vezes: aceitiei na hora o convite.
Cheguei bem cedo ao estádio e encontrei de cara, um dos professores.
Resolvemos entrar com muita antecedência, a fim de conseguirmos um bom lugar, nas cadeiras especiais laranjas.
Aos poucos o campo foi enchendo (deu mais de trinta e quatro mil pessoas lá), foram chegando os outros professores e depois de muitos cachorros quentes e guaranás, o juiz apitou o início da partida.
Foi um jogo eletrizante, com gol logo no início, pressão do time adversário, torcida impaciente com alguns jogadores, frisson das organizadas na arquibancada, jogadas bonitas e uma vitória merecida do time da casa.
Choveu muito, muito mesmo, no Pacaembu, um dos estádios mais charmosos que eu conheço.
Saímos muito felizes, muito molhados e apressados, já que a estação de metrô mais próxima ainda exigia uma boa caminhada e o seu horário de fechamento estava próximo.
Dentro do trem, muita conversa sobre futebol, um pouquinho sobre trabalho e a certeza que voltaríamos a algum outro jogo do Timão.
Desceram dois na Sé e o terceiro em Santana.
Segui sozinho para o Tucuruvi.
Nesse caminho solitário até a minha casa, pensei muito naquelas emoções vividas e percebi o quanto importante é, não sermos intolerantes.
Eu não sou corintiano!
Mas, com o coração aberto tive uma noite deliciosa.
Torci pelo time, fiquei chateado quando o Bragantino empatou, sorri quando a torcida sacaneou o meu time, que jogava em outra cidade e estava perdendo, e vibrei muito quando o Corínthians fez o segundo gol.
Notem que, eu continuo torcendo para que o meu time seja campeão, mas vou continuar assistindo as pelejas dos times adversários, que jogam um bonito futebol.
Essa tolerância me permitiu usufruir de momentos felizes ao lado dos meus amigos.
E quantas vezes não conseguimos compartilhar um bom show musical, ao lado de pessoas queridas, pelo simples fato daquele gênero não nos apetecer!
Como a gente poderia se divertir mais, frequentando alguns lugares que não tem muito a ver com o nosso estilo de vida, mas são aqueles onde, algumas pessoas que gostamos, se sentem bem?
Como seria interessante ir a festas de religiões diferentes da nossa, compartilhando uma boa companhia de alguma pessoa querida.
Nesse jogo, do Pacaembu, tinham dois garotos que estavam indo pela primeira vez a um campo de futebol, ver o seu time do coração.
Do lado deles, estava eu, um terceiro garoto, vendo pela primeira vez dois grandes ídolos atuarem lado a lado.
Obrigado meus amigos, por me permitirem compartilhar de tamanha emoção e alegria.
E estou de coração aberto para torcer mais vezes, pelo time de vocês...

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Eleição

Na escola estadual em que estudei, havia uma maneira democrática de se escolher o professor que seria o orientador da sala.
Era através do sufrágio universal.
Os alunos votavam em um professor, que gostariam que fosse o responsável pelas conversas com a sala, que fosse o representante das nossas reinvindicações, um conselheiro e amigo.
E, na realidade, era isso mesmo que ele acabava se tornando: um amigo.
Então, havia muita responsabilidade nessa escolha.
A classe conversava antes e, de maneira pouco recomendável, acabava concentrando o seu voto em um professor específico que, geralmente, era aquele mais legal ou mais carismático.
Desde o primeiro colegial, a sala sempre escolhia a Dona Valdete.
Uma professora de geografia, solteirona, de sorriso tímido, bem pequeninha, mas com um domínio fantástico do conteúdo da sua matéria, da oratória e da retórica.
Era fantástica!
Foi, inclusive, quem me influenciou a seguir na minha atual profissão: sou professor de...geografia!
Mas, essas características não eram só admiradas pela nossa sala.
Em todas as turmas que ela dava aula, ganhava como orientadora, de forma quase unânime.
E como ela não podia ser a responsável por todas as salas, tinha que escolher uma.
Para não provocar nenhuma discussão, ela escolhia aquela em que obtinha o maior número de votos.
É óbvio, que as salas com mais alunos sempre venciam.
E a nossa, que era pequena, tinha que aceitar um outro professor, que geralmente ficava em segundo lugar na votação (por sinal, com pouquíssimos votos).
No segundo colegial, inclusive, todos votaram na Dona Valdete. Como nenhum outro professor foi votado, a direção do colégio indicou um nome. Foi um professor de física, que não gostava nem um pouco da nossa agitada turma.
No terceiro colegial, como de costume, já esperávamos que a Dona Valdete não ficaria como nossa orientadora.
Como poderíamos homenageá-la no final do ano, escolhendo o seu nome como paraninfa da turma, pensamos em colocar alguém da nossa preferência na votação do responsável pela sala.
Verificamos que a turma, formada majoritariamente por meninas, queria insistir com a nossa professora de Geografia.
Nós, sete meninos, percebemos que dessa maneira seria fácil elegermos um representante que nos agradaria.
Pensamos em vários nomes e chegamos na polêmica figura do nosso professor de filosofia: o padre Gerônimo.
Na realidade, era um ex-padre, pois tinha sido expulso da igreja católica, já que havia saído, algumas vezes, com algumas paroquianas.
Era negro, marxista, usava e abusava da dialética nas suas aulas e um defensor ferrenho das idéias socialistas (eu estudei na década de 80, em plena existência da extinta União Soviética).
Nem precisava escrever que, no final do período ditatorial, essas idéias nos fascinavam.
Como era uma figura pouco atraente, as meninas da sala o odiavam.
Era polêmico e direto.
Não deu outra.
No dia da eleição, com os nossos sete votos conseguimos eleger, pela única vez na história do colégio, o padre Gerônimo como representante de uma sala.
As meninas nos colocaram no ostracismo por alguns dias, mas valeu a pena, pois em nenhum ano da história do nosso grupo escolar, teve um representante de sala que lutasse tanto pelos interesses dos seus alunos.
Foi uma manobra eleitoral, que resultou em ganhos imensuráveis.
Uma exceção!
E, no final do ano, ele estava sendo homenageado, como patrono, ao lado da Dona Valdete, nossa paraninfa, eleitos de maneira quase unânime.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Pescaria

Hábito comum no interior é a pescaria.
Hoje em dia, com rios poluídos e poucos peixes à disposição, cresceu o número de pesqueiros, os famosos "pesque e pague".
Mas, no tempo que ainda se "amarrava cachorro com linguiça", a atividade era feita à beira de rios e córregos, sentado no barranco, municiados com varinha de bambu e minhoca.
Lembro-me das minhas primeiras pescarias ao lado do meu pai.
Íamos sempre em número suficiente para evitar qualquer tédio, caso não aparecessem seres que quisessem se submeter aos nossos anzóis.
A preparação começava na véspera, com a escolha da vara correta, específica para cada tipo de peixe.
Eu era encarregado de conseguir um bom número de anelídios, que eu buscava nos canteiros da horta dos fundos da casa da minha avó.
Tinha que fazer escondido, pois aquela história que "cada enxadada era uma minhoca", é coisa do folclore futebolístico.
Eram muitas enxadadas, que deixavam os canteiros praticamente destruídos, por isso tinha que fazer em um horário que ela não estava presente.
E depois, tentar ajeitar um pouquinho as cenouras, beterrabas e almeirões caídos.
Compravam-se mantimentos e muita cachaça (pena que o excesso de bebida acabava com a pescaria de algumas pessoas). Para as crianças fazia suco de groselha, que era colocado em garrafas limpas de leite.
Nos dias mais frios também se levava, em garrafas térmicas, um pouquinho de chá de cravo, para amenizar a umidade cortante da beira do rio.
Não existia vestimenta específica para a pescaria.
A minha mãe só deixava eu usar uma roupa bem velha, complementada por botinas e um boné.
O nosso transporte era uma velha Rural do meu tio, que ia apinhada de tralhas e pessoas.
O almoço era feito no próprio lugar, em uma parte mais afastada do rio, entre as árvores.
Em um desses momentos eu quis surpreender os presentes e fiz o arroz para o almoço.
Lavei bem os grãos, escorri, piquei cebola e alho, pus para fritar em uma pequena porção de óleo de milho e coloquei o arroz.
Tanto arroz, que quase chegou até a boca da caçarola.
Completei com água e fiquei observando a minha primeira grande aventura culinária.
Depois de algum tempo, vi que a tampa da panela estava estufando com o arroz crescendo e quase saindo da mesma.
Não pensei duas vezes, coloquei uma pedra em cima da tampa.
Naquele dia, depois da bronca, os peixes comeram uma pelota de arroz, bem temperadinha. E nós, passamos a biscoito Mabel.
Lembro-me também das várias histórias que o meu pai contava, como do dia que ele deu um banho em um tiziu (um passarinho preto, bem pequenininho, que dá pulinhos e emite um som parecido com o seu nome).
Ele estava pescando lambaris, praticamente imóvel, com aquela varinha bem fininha de bambu, quando um tiziu sentou na ponta dela.
O bichinho pulava e gritava "tiziu".
Dava um pulinho e caía no mesmo lugar.
Aquilo foi incomodando tanto o meu pai, que ele esperou um novo pulinho e tirou a varinha rapidamente.
Sem o apoio, o passarinho caiu dentro da água e só não se afogou, pois é uma avezinha safada, que adora tomar banho, saindo rapidamente para chacoalhar as penas em um galho de um jambeiro, poucos metros dali.
Eu adorava também aquelas de peixes grandes, cobras e assombrações que ele contava que sempre encontrava.
Eu mesmo nunca tinha presenciado nenhum desses três elementos nas nossas pescarias.
Além das histórias, das gargalhadas, das broncas e da chuva que sempre nos pegava, fica na minha memória o sabor delicioso dos lambaris (os únicos que conseguíamos pescar) bem limpinhos, batidos no fubá e fritos em óleo bem quente.
E o Rio Sapucaí, com as suas curvas e tanta discrição...

Seu Elpídio

Seu Elpídio viveu boa parte da sua vida em uma cidade do interior de São Paulo.
Na década de 70, mudou-se para a capital, mas nunca se esqueceu das suas origens, pois sempre voltava pra rever os amigos e parte dos familiares que ainda haviam ficado lá.
Foi contador (na época ainda chamavam de "guarda-livros") e dono de mercearia.
Sempre amou o time da cidade.
Foi presidente do clube por um mandato.
Foi responsável por obras importantes nesse período, como a construção de uma arquibancada de madeira para o modesto campo, localizado no centro da cidade e manteve sempre um time competitivo, mesmo só disputando campeonatos amadores.
Chegava a se exaltar e até a brigar pelo seu time do coração.
Em um desses acirrados campeonatos regionais, com o time disputando a liderança, ele acompanhou os seus jogadores até uma cidade vizinha, menor em tamanho e economia, que a sua, mas com uma grande rivalidade que, óbvio, também se estendia aos gramados.
O jogo começa bem disputado, mas aos poucos, o time da casa começa a dominar a peleja, marcando um gol.
E a torcida não perdoa.
Como o alambrado era muito próximo do campo, alguns torcedores vão até o banco de reservas da equipe visitante (onde estava seu Elpídio) e começam a fazer troça com os integrantes da comissão técnica.
O nosso ilustre presidente, já muito irritado, enrola um pedaço de jornal no formato de tocha, coloca fogo com o cigarrinho de palha que estava fumando e mostra para a torcida.
Como para bom entendedor, "pingo é letra", a torcida logo entende o recado.
Seu Elpídio mostrava a tocha de jornal aos torcedores, em referência à "lanterna" que o time da casa segurava no campeonato (em referência ao último lugar da equipe).
Não podia acontecer coisa diferente: a torcida ficou furiosa, empurrando a tela do alambrado, querendo invadir o campo para pegar o nosso ilustre protagonista.
Para evitar mal maior, o policial que estava presente no local, dirigiu-se até o banco de reservas e "convidou gentilmente" o ilustre presidente da agremiação visitante a acompanhá-lo.
Seu Elpídio deixou bem claro que só sairia de campo, acompanhado pelo delegado da cidade (ele sabia que o mesmo não estava presente).
O policial ficou irritadíssimo, pedindo respeito à autoridade presente (no caso a dele).
O "quase preso" não pensou duas vezes e soltou a máxima:
- "Desde quando soldado é autoridade?"
O ofendido levantou o cacetete para bater no inoportuno senhor, mas foi contido pelos jogadores reservas do time visitante.
Como o tempo ameaçou fechar, naquele modesto campo de futebol, os dirigentes da casa resolveram contemporizar e pediram ao policial que relevasse o desacato.
Com a situação resolvida, o jogo chegou até ao final e, com a derrota da equipe, o nosso ilustre herói volta para casa mais triste.
Mas, quase duas décadas depois, em 1977, ele estava presente na final do campeonato paulista da segunda divisão, agora como torcedor, para ver o seu time do coração, subir para a primeira divisão.
O campo já era outro, muito maior, bem diferente daquele que ele tinha feito as modestas melhorias, mas que agora lhe trazia uma das últimas alegrias futebolísticas do seu time do coração...

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Coisas de animais

A mulher pediu para o filho ir até o pasto, buscar o burrinho para levar uma carga de biscoitos de polvilho até a cidade.
O menino fez cara feia, espreguiçou-se e, após ouvir mais três vezes o pedido da mãe, levantou-se vagarosamente da rede e foi para o quintal.
Ao seu lado saiu o sempre fiel escudeiro, um cachorrinho barrigudo e de orelhas caídas, com o mesmo andar desengonçado do dono e pouco afeito também a algum tipo de trabalho (imagine-se o cão trabalhando, quando o menino tinha que ir para a cidade, comprar ou vender algo).
No caminho, as duas figuras quixotescas, foram parando em tudo que é sombra de árvore, nas moitas de gabiroba e no canto de alguma ave (tinha dezenas delas, lá).
Com aquele sol esturricando a cabeça de ambos, o pasto parecia ainda mais distante.
O rapazinho imaginava diversas coisas pelo caminho, como o dia que ele teria um grande número de empregados, que buscariam o seu belo carro, quantas vezes fosse necessário, para qualquer deslocamento. Nem que fosse do quarto até o banheiro, que ficava do lado de fora da casa.
Imaginava também o dia que não teria que trabalhar ou que não precisasse mais ir para a escola, como o Toninho da Maria Alva, que fizera dezoito anos e pode sair de casa sem prestar contas aos seus pais nem terminar a quarta série.
Eita cara de sorte, aquele!
O nosso amigo só não sabia que o Toninho tinha saído de casa para servir o Exército, em um batalhão no meio da Floresta Amazônica, a centenas de quilômetros de qualquer ponto de civilização.
Mas, mesmo assim, ele ia preguiçosamente andando pelo caminho, acompanhado do seu fiel companheiro canino.
Até que chegou no pasto.
E avistou o burrico, mascando uma moita quase seca de capim, com aquele olhar triste e entediado de qualquer animal de tração.
O garoto foi até a cerca e pegou a cangalha para colocar no lombo do muar.
Ao se aproximar, o menino percebeu que o jumentinho olhou bem nos seus olhos e, de maneira inimaginável, soltou as seguintes palavras:
- "Calma lá, moleque, você vai de novo me colocar essa porcaria aí..."
O menino parou, quase caiu para trás e coçou os dois olhos de maneira incrédula.
Mas, novamente o animal disse:
- "Isso mesmo, seu abestado, eu já estou cansado de ser usado para carregar esse monte de coisas para cima e para baixo..."
O menino não pensou duas vezes, largou a cangalha e saiu em disparada em direção à sua casa, acompanhado pelo cãozinho, na mesma velocidade.
Ao chegar em casa, a mãe pergunta ao assustado garoto, o que tinha acontecido, já que ele apresentava o rosto pálido e a boca trêmula, como se tivesse visto assombração.
O menino mesmo gaguejando explica para a mãe que o burrinho falou que não queria ser encangalhado. E isso por duas vezes!
A mãe incrédula, ameaça com uma bela surra, aquele preguiçoso e mentiroso garoto.
Até que, na hora agá, o rapaz é salvo pelo cachorrinho, que entra na frente da mulher e diz:
- "O burro falou sim, minha senhora, eu também ouvi..."

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Futebol de roça

Aqui em São Paulo, as pelejas futebolísticas amadoras são chamadas de jogos de várzea.
Esse nome vem do antigos campos de terra, que nas décadas de 20 e 30, se localizavam na várzea do Rio Tietê, onde se jogava o futebolzinho de final de semana, em épocas de pouca chuva, é claro, pois a característica principal dessas áreas é o alagamento provocado pelo rio, nos dias mais chuvosos.
Como no interior não existiam esses campos, o povo chama o bom e tradicional jogo bretão amador, de "futebol de roça", pois a maioria dos campos estavam localizados na área rural.
Na minha cidade não era diferente.
Entre muitas fazendas que possuíam bons times amadores, destacava-se a Fazenda São Luiz.
Ela tinha dois quadros: o de aspirantes (como se fosse um time B, formado pelos "pernas de pau") e os titulares, o time principal do local.
Então, sempre levava-se dois elencos para qualquer jogo na São Luiz: primeiro jogavam os aspirantes e, depois, os titulares.
Nessa fazenda, como em qualquer outra, naqueles tempos, o campo era uma área de pastagem, com duas traves separadas por uma grande extensão, quase do tamanho de um campo oficial, balizadas por uma cerca de arame farpado.
Antes dos jogos, quase sempre realizados no sábado à tarde, a rapaziada passava recolhendo o extrume das vacas que, na semana, pastavam naquele "manto sagrado" e reforçavam com cal, a marcação das quatro linhas.
Em dias mais frios, antes do jogo, a peãozada que compunha o quadro de aspirantes do time da fazenda, bebia uma cachacinha, diretamente no alambique, já que o campo era próximo dele e rodeado de um extenso canavial (em dias quentes, bebia um pouco mais...).
Inclusive, todo becão adorava dar aqueles chutões na bola em direção ao alambique.
Era o único lugar que praticamente o time todo saía correndo para buscar a pelota, sem pedir ajuda aos gandulas!
Em um desses jogos magistrais em que o nosso modesto time participou, naquela fazenda (eu jogava nos aspirantes, é claro), ocorreu um pequeno incidente.
Já chegamos um pouco atrasados, pois o caminhãozinho que sempre levava o nosso esquete, ferveu, e tivemos que esperar bastante até o radiador esfriar para que pudéssemos colocar mais um pouco de água.
Era um Fordinho de frente quadrada, que fazia entregas do supermercado do Waldemar durante a semana e nos sábados carregava pelo menos umas quarenta pessoas entre jogadores, comissão técnica, parte da arbitragem (que era dividida entre o mandante e o visitante), torcida e o massagista (o Purpurina se dizia massoterapeuta, mas nunca ninguém quis que ele colocasse as mãos nas suas pernas...).
Quando desembarcamos, notamos um pouco de animosidade do lado dos nossos adversários, pois como o campo só contava com a iluminação natural, corria-se o risco de acabar a segunda partida, sob os faróis dos carros presentes no local.
Times perfilados, percebemos que eles tinham escalado um dos seus mais famosos zagueiros: o Tonhão.
Ele era um sujeito de uns dois metros, com quase cento e cinquenta quilos, que era peão da fazenda (diziam que ele conseguia segurar um garrote com as mãos para ser marcado). Nem o uniforme cabia nele (parecia que ele vestia um conjuntinho infantil)
Posso dizer que o Tonhão era o pesadelo de qualquer atacante, pois não aceitava nenhuma jogada mais plástica, sem tentar quebrar a perna do sujeito.
E, naquele jogo, o trio de arbitragem seria inteiramente da fazenda.
Jogo iniciado, muito chutão para lá e para cá, um ponta-pé ou outro por parte dos adversários e tudo corria na mais absoluta paz.
Até que o Naldinho, o nosso mais habilidoso jogador, que atuava nos dois quadros (aspirante e titular) resolveu encarar a fera.
Pegou a bola sozinho na ponta esquerda e cortou para o meio do campo.
Nessa passagem o seu marcador passou a ser o Tonhão.
Ele não pensou duas vezes, deu um belo chapéu no animalesco beque, esperou ele chegar bufando e tocou a bola entre as suas pernas, deu meia volta e com um belo chute encobriu o goleiro, marcando um dos mais belos tentos que eu já pude presenciar.
E, ainda por cima, saiu comemorando, imitando um touro bravo.
Aqueles dribles desconcertantes, o belo gol e, principalmente, a tosca comemoração causou um alvoroço dos infernos.
O time inteiro, liderado pelo Tonhão, partiu para cima da gente, distribuindo socos e ponta-pés.
Em menor número, nos dispersamos e corremos para o canavial.
Eu até hoje não sei como passei pelo vão da cerca de arame farpado, sem me machucar (sim, eu era ligeiro naquela época), sendo um dos primeiros a chegar na touceira de cana.
Fiquei escondido por mais ou menos meia hora, até ouvir o barulhinho salvador do nosso caminhãozinho que, ia devagarinho pela estrada, recolhendo o nosso valente time.
Nunca mais tivemos coragem para voltar a jogar na Fazenda São Luiz.
Mas, pelo menos eles nunca mais iriam se deleitar com o nosso "futebol arte"...

Populismo contemporâneo

É bem comum, ainda hoje, os candidatos a algum cargo político, prometerem mundos e fundos, usarem uma boa oratória e abusarem de estratégias já consolidadas pelo tempo, para conseguir minguados votos que podem decidir uma eleição.
Mas, apesar da farta falácia e de discursos cada vez menos convincentes da maioria deles, nós eleitores, somos protegidos por uma legislação eleitoral, que deixa cada dia mais difícil, o abuso de práticas incoerentes com uma sociedade democrática.
Inclusive diminuiu um pouco o número de candiadtos folclóricos, que marcavam mais pela sua excentricidade do que pelos projetos de governo.
Um deles, ainda na ativa, estudioso convicto dos métodos populistas das décadas de 40, 50 e 60, principalmente de Getúlio, Ademar de Barros, Juscelino e Jânio, ainda via naquela maneira arcaica de fazer política, uma chance de se eleger a deputado federal.
Montou vários comitês no interior, fazia carreatas por pequenas cidades, bebia café no copo do eleitor, pegava criancinhas pobres no colo, entre tantas outras estratégias, que ainda são permitidos pelo TRE (por "debaixo do pano", ele ainda conseguia um caminhão de terra, meio metro de areia e outros 'agrados" para um ou outro correligionário mais confiável).
Com isso, ia sendo conhecido em cada vez mais lugares deste interiorzão.
Até que, em um desses dias de intensa campanha, decide aumentar a sua capacidade de atuação.
Aluga um Cessna, com piloto e tudo, e arma uma estratégia infalível: deslocar-se de avião entre muitas pequenas cidades, fazendo comícios relâmpagos de poucos minutos cada um.
Decolou bem cedinho, da cidade de São Paulo, e escolheu uma área com dezenas de pequenos municípios, bem próximos entre si.
Antes do almoço já tinha discursado em seis cidadezinhas.
Ao descer na sétima, viu que os seus assesssores montaram o palanque na pista do próprio aeroporto.
Economia primordial de tempo!
Desembarcou rapidamente e já se dirigiu ao microfone:
- "Povo de Santa Rita..."
O seu auxiliar, mais que rapidamente, corrigiu o nosso nobre candidato, já que Santa Rita, seria a próxima cidade.
- "Doutor, aqui é Três Porteiras!"
E o candidato sem pensar, ainda com o microfone aberto:
- "Ah, é tudo a mesma porcaria..."
Elegeu-se, mesmo tendo perdido alguns votos em Três Porteiras!

Furto na galeria

Cidade pequena, do interior do estado de São Paulo, mas com uma economia agroexportadora, o que fazia circular um volume razoável de dinheiro por aquelas paragens.
Idalécio, um professor formado na capital, com pós doutorado na França, em artes plásticas, resolve abrir uma filial da sua famosa galeria, naquela pequena cidade.
Além de ser "filho da terra", ele viu uma perspectiva de bons ganhos, através de vendas de quadros para os emergentes fazendeiros da região.
Montou o negócio em um dos sobrados mais tradicionais do centro da cidadezinha.
Trouxe bons quadros, mesclando as tradicionais paisagens e naturezas mortas, com algo mais contemporâneo, mas de fácil aceitação pelas tradicionais famílias da região.
Ao se dirigir à prefeitura para retirar o alvará de funcionamento, notou a imensa alegria do prefeito, ao receber o projeto.
É claro, que ele traria um ganho cultural imensurável ao município, principalmente por ser Idalécio, um dos mais respeitados marchands da capital.
Mas, ele percebeu que havia algo a mais.
Não era só pelo crescimento da cultura dos munícipes, que deixava o nosso nobre alcaide mais excitado.
O motivo maior é que a sua esposa, tinha aprendido a pintar e, segundo o seu professor, apresentava estilo e técnica únicos, só lhe faltando um lugar adequado para que as suas telas pudessem ser apreciadas e bem comercializadas (já não haviam mais parentes, financiadores de campanha e asseclas para vender a incipiente produção da primeira dama).
Após a aprovação do projeto o prefeito praticamente convenceu Idalécio a montar uma pequena exposição com a parte mais expressiva da obra de sua esposa.
O nobre empresário aceitou a proposta e quase voltou atrás ao ver o que seria exposto.
Mas, como estava bem distante da capital e seria apenas por alguns dias, resolveu agradar o expressivo político local.
Para a inauguração trouxe algumas obras expressivas da sua galeria matriz e convidou meia dúzia de amigos artistas para também engrossarem a exposição.
Vendeu-se muita coisa, o jornal da cidade fez uma bela menção às obras vindas da capital, inclusive aquelas produzidas pelo proprietário da galeria, mas nenhuma tela da primeira dama tinha sido sequer sondada, para a venda.
Muitos até discutiram o seu valor artístico.
Muito chateada a esposa do prefeito cobrou dele uma atitude, que mostrasse ao ignorante povo daquela região, o quanto importante e valorizada eram aqueles quadros (da sua esposa, é claro).
Então, ele paga uma matéria em um grande jornal da capital, destacando a abertura na cidade de tão importante espaço e do valor do acervo que estava ali exposto, sem exceções.
Isso, é claro, atraiu a atenção de alguns larápios, que vivem do furto e comercialização desse tipo de produto.
E seria fácil levar o valioso acervo, já que o local nem de longe, contava com a segurança das grandes pinacotecas do estado.
Tanto que, dois dias depois de publicada a matéria, aconteceu um grande roubo na galeria.
Notícia imediata na mídia da capital, muita comoção pela perda, mas o prefeito viu um lado positivo naquilo: valorizaria sobremaneira a arte da sua mulher.
Rescaldo feito, tinham sido levados todos os quadros (que já não eram muitos).
Mas, três dias depois a quadrilha foi presa ao tentar vender a terceiros o fruto da ação.
A polícia capturou os mentores e reenviou para a cidade o acervo da galeria, do jeitinho que os larápios tinham surrupiado.
Mas, para equilibrar a imensa alegria da população e do marchand, em reaver o precioso acervo, veio a tristeza do prefeio em verificar que as telas da sua esposa serviram para embrulhar as obras mais conhecidas, como um bom e velho papel pardo.
É, não se fazem nem mais ladrões como antigamente...

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Dia da árvore

Mês de setembro, em uma pequena escola da grande São Paulo.
A professora dos pequenininhos é cobrada sobre a comemoração do Dia da Árvore.
Ela pensa em algo que possa, de fato, marcar positivamente a cabecinha dos seu alunos, quanto a consciência ecológica, sustentabilidade e outros conceitos do "politicamente correto".
Como educadora, ela queria fugir daqueles velhos clichês e do formalismo obrigatório das antigas comemorações escolares influenciados pelo "civismo da década de 70".
Tinha que ser algo com sentido!
Ao perceber que a escola tinha uma pequena área verde e que, por coincidência, poderia ser ampliada, teve uma idéia óbvia: plantar algumas mudas no jardim da mesma.
Conseguiu mudas de pau-brasil, discutiu bastante, naquela semana, com os seus aluninhos a importância da preservação do verde, o papel de cada um e a necessidade de se viver em harmonia com a natureza, mesmo morando em uma grande cidade.
Os meninos adoraram e ficaram ansiosos pelo grande dia, quando plantariam as mudinhas da árvore que deu o nome ao nosso país.
O dia chegou, com um sol lindo, a molecada com a mão suja de terra e a professora com muito orgulho do projeto finalizado.
Até a coordenadora apareceu, encerrando a cerimônia com algumas palavras bonitas.
Tinha até fotógrafo, documentando tudo.
Dever cumprido, a professora foi feliz para casa.
No outro dia, ao chegar no colégio, ela percebeu que as mudinhas plantadas na véspera, não estavam mais no local.
Impressionada com aquilo ela se dirigiu até a coordenação e foi comunicar o fato à sua chefe.
Mas, ao fazer a sua observação, ficou chocada com o que escutou da coordenadora:
- "Ué, mandei retirar. Plantamos as mudinhas só para comemorar o dia da árvore, mas elas não poderiam ficar ali, pois não combinam com o nosso jardim."
E "o grande acontecimento" já estava em destaque no site do colégio.
Então, para que serviriam aquelas árvores mesmo...