quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Criancinha

Só quem tem uma pecinha dessas em casa, sabe do que eu vou escrever.
O Dieguinho tinha oito aninhos e nunca tinha passado uma noite fora de casa.
Sequer dormira antes, na casa de algum parente.
Era um menininho frágil, branquinho, de cabelos encaracolados, com um olhar sofredor, sob um par de óculos bem redondinhos.
Muito mimadinho pela sua mamãe, era temporão, com mais de quinze anos de distância dos seus irmãos mais velhos.
No colégio tinha poucos amiguinhos e vivia grudado na barra da saia da professora.
As aulas de educação física eram um inferno, pois não gostava das brincadeiras esportivas, nem das atividades de sociabilização, promovidas pelos educadores.
Sempre arrumava alguma doença ou desconforto, nesses momentos, para sair da quadra para o aconchego seguro da enfermaria (e também da enfermeira, que parecia a vovó Dolores).
Até que, em um lindo dia, sem entender muito bem o porquê, a sua mamãe, resolveu mandá-lo para um acampamento de três dias, que acontecia todos os anos, em uma cidade do interior do estado.
O menininho pediu que a sua mamãe relevasse a indelével decisão, mas ela estava firme nos seus propósitos em mandá-lo para Tatuí, com o seu colégio.
O garotinho chorou, ameaçou uma síncope, gritou e ajoelhado, implorou...
Mas, a sua querida mamãe não voltou atrás.
Foram os dois até a escola e após conversarem com um dos coordenadores, ficou decidido que, se o Dieguinho não conseguisse sobreviver por mais de um dia, longe da sua amada família, ele poderia voltar para casa, acompanhado de alguma professora (ele nem desconfiara que aquela promessa era só um paliativo para acalmá-lo).
Depois de uma torturante semana, chega o dia da viagem.
O menininho chega ao local de embarque, acompanhado apenas pela sua mamãe, que logo o coloca no ônibus e desaparece.
Dieguinho já começa a sentir saudades, desde aquele momento e nem as brincadeiras dos monitores o distraem.
Mas, "tudo bem", pois era só chegar no acampamento que ele pediria para voltar.
Viagem tranquila e ao chegar no local, ele recebe uma notícia terrível.
A professora lhe informa que não há sinal de celular naquela área.
Então, como ele poderia conversar com a sua mamãe e pedir para voltar?
Isso gerou cenas dignas de um dramalhão mexicano, com muita paciência por parte de toda a equipe de professores que estavam no acampamento.
Noite terrível, manhã pior ainda.
Mas, na hora do almoço, uma esperança.
O Dieguinho viu um grupo de ônibus e vans que acabaram de chegar no local para buscar alunos de uma outra escola.
Ele sorri e esbanjando simpatia (mas com a sua tradicional carinha de sofrimento), sai perguntando de motorista em motorista se ele poderia pegar uma carona até a capital.
Só desistiu quando percebeu que os motoristas não estavam muito a fim de levá-lo de volta até a sua mamãe e a coordenadora já muito impaciente o recoloca de volta nas atividades.
Atividades, inclusive que, além de o distrairem, na maioria das vezes o assustavam.
Quase teve um ataque cardíaco ao ver o fóssil de um Tiranossauro Rex e ficou paralisado ao ouvir o som de algum bicho enorme no meio do mato (ele nem tinha percebido que o rugido vinha de uma enorme caixa de som).
Em uma pequena trilha que avançava sobre um riacho bem transparente, com água na altura das suas canelas, o Dieguinho percebeu que estava sendo seguido por alguma coisa vermelha.
Quando ele se movimentava, "a coisinha rubra" se movimentava também.
Ao parar, aquilo ficava estático ao seu ladinho.
Frente a aquela situação ele desesperou-se e começou a gritar, saindo correndo pelo minúsculo curso d'água, com o troço avermelhado o acompanhando, na mesma velocidade.
Só acalmou-se ao saber pelo monitor, que aquele ser escarlate que o incomodava, era nada mais, nada menos, que o seu próprio tênis.
E assim, passaram-se os outros dias e o Dieguinho pode voltar para casa.
Aliviado ele vê a sua mamãe na porta do colégio e lhe dá um abraço de urso, daqueles que parecem que não vão acabar nunca mais.
A mamãe deixa-o no carro com o seu irmão mais velho e volta até o ônibus para agradecer aos professores a paciência, o carinho e a atenção com o seu caçulinha.
E, com um sorriso marcante, arremata:
- "No ano que vem, vou mandá-lo de novo..."

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Portunhol

Santa Catarina é um estado que recebe, todos os anos, uma horda de argentinos.
Eles trazem alegria e muito dinheiro para as cidades catarinenses.
É impossível ir até lá, sem encontrar pelo menos uma dúzia deles.
Foi o que aconteceu com a Cidinha.
Acompanhando os seus cunhados mais ricos, viaja de férias para o estado barriga-verde e comparece a todos os bons bares e boates de Florianópolis a Balneário Camburiú.
Recém separada, muito fogosa e com a sua beleza um pouco incompreendida pela maioria dos paulistas, vê naqueles espaços recheados de portenhos, uma chance de conseguir um bom partido estrangeiro.
Com muita esperança sempre se arrumava bem, perfumava-se com uma fragrância cítrica madrilenha e ia para a guerra.
Só tinha um "pequeno probleminha", que cooperava muito para a sua constante retranca: ela não falava patavinas de espanhol.
Por isso, na maioria das vezes, ela evitava iniciar uma conversa com algum "hermano", sempre esperando uma abordagem por parte deles.
Esse pequeno detalhe da língua era praticamente insignificante para Cidinha, já que não a desanimava.
Mas, em um bar bem badaladinho de Jurerê Internacional, ela vê uma grande oportunidade, com um grupo de argentinos conversando com os seus cunhados em um portunhol compreensível.
Feliz da vida, ela ajeita o seu pretinho básico e se dirige até ao grupo.
Acompanha o desenrolar da conversa e percebe um olhar mais atento de um dos portenhos presentes.
Ela se anima e começa a fazer carinha de inteligente, mostrando com o franzir da testa e com sorrisos, que estava acompanhando bem o andar da conversa.
Observando isso, o argentino que se mostrava interessado nela, interrompe o papo e faz uma pergunta longa, em um bom portunhol, diretamente para ela.
Sem entender nadica de nada do que foi perguntado, ela arregala os olhos, levanta a sobrancelha e devolve:
- "Acuma?"
E Deus salve a nossa Didi Mocó Sonrisal Colesterol...

Celsão e a Kombi

Nesse carnaval, dei uma passadinha em Itaúnas, um vilarejo localizado no norte do Espírito Santo, na divisa com o estado da Bahia.
Lugar paradisíaco, que conta com dunas, lindas praias, riachos ótimos para banhos e uma agitação noturna que agrada a todos, com bons forrós.
Tem também uma população agradável, sempre disposta a dois dedinhos de prosa.
No caminho para o Riacho Doce, encontra-se a Pousada do Celsão.
Figuraça, esse cara!
Já chega no carro, descrevendo a qualidade do almoço do local, feito pela Mara, onde o tempero é a nossa fome...
Vale a pena dar uma parada e conferir a grande variedade e fartura da refeição, com peixe, carne de boi, linguiçinha, carneiro guisado, pescoço de peru, entre outras iguarias, onde o tempero não é só a fome, mas a simpatia e a magia do Celsão e das suas histórias.
Uma delas, que me foi contada, relata a epopeia com o seu primeiro carro.
Diz ele, que há uns trinta anos atrás, quando ainda morava em Belo Horizonte, juntou dinheiro e conseguiu comprar uma Kombi, novinha, para tentar iniciar um empreendimento próprio no setor de entregas locais.
Depois de tirar o carro na concessionária, parou em uma padaria para tomar um cafezinho e mostrar a sua nova aquisição aos amigos.
Nisso chegam duas pessoas, que começam a perguntar aos presentes quem era o dono da Kombi. O nosso amigo se identifica e, surpreso, recebe uma proposta para levar uma carga até Cuiabá, no estado de Mato Grosso, naquele mesmo dia.
Desinteressado, ele agradece a oportunidade e nega o carreto.
Mas, com a insitência dos dois estranhos e, principalmente, pela alta quantia oferecida ao nosso bom mineiro, pelo transporte (quase um terço do valor do veículo), não houve como não ceder ao apelo dos dois interlocutores.
O Celsão aceita e vai até um barracão na periferia da cidade e fica esperando uma turma encher a Kombi, com várias caixas de papelão, bem lacradas e sem identificação da mercadoria.
Com o carro cheio, sozinho, ele vai para o distante estado, prometendo entregar a mercadoria no menor tempo possível.
Com um grande medo, mas dependente daquele valor que lhe foi pago, sabia que estava se arriscando em demasia.
Chega dentro do prazo no estado do Centro-oeste e faz a entrega sem saber o que tinha transportado.
Mas, por sorte, acabara de fazer o primeiro serviço com o seu carro novo.
Antes de procurar um hotel para dormir, já que precisava retornar para Minas com muita rapidez, parou em uma padaria para tomar um cafezinho.
Novamente, dois homens se aproximaram e começaram a examinar a Kombi.
Desconfiado, pois estava em uma cidade desconhecida, o Celsão vai até eles, questionando o motivo de tanta curiosidade em relação ao carro.
Os dois ao identificarem o nosso amigo como dono do veículo, fazem uma proposta para comprá-lo, em dinheiro, por um valor que representava quase o dobro do que ele havia pago.
Sem entender muito aquele repentino interesse e, ainda com a cabeça incomodada pela dúvida total do que ele havia transportado até Cuiabá, ele não pensa duas vezes e vende o carro aos dois estranhos.
Os três se dirigem até uma agência do Banco Real e finalizam o negócio, com o depósito do valor combinado, e em dinheiro, na conta dele.
Imediatamente, o Celsão se desloca até o aeroporto e consegue um voo para Brasília e, mais tarde, outro para Belo horizonte.
Ainda sem acreditar no que tinha lhe acontecido, conta a epopeia a uma plateia estupefata, composta de parentes e amigos.
E diante de todos, fez uma promessa: que nunca mais iria comprar outra Kombi.
Hoje, tem uma camionete que, segundo ele, "só faz entrega de gente", de Itaúnas para a sua pousada.
E também dos ingredientes e do tempero do bom almoço da Mara...

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Simpatia

Para o tratamento de doenças, a atitude inteligente é procurar um médico.
Só ele pode diagnosticá-las, prescrevendo os medicamentos corretos para o paciente.
Mas, nem sempre essa obviedade acaba ocorrendo.
Muitas pessoas se julgam especialistas em tudo e como "conhecedoras do seu próprio corpo", acabam usando e abusando da automedicação.
Em alguns casos, chegam até mesmo a receitar remédios para os seus conhecidos: "olha, quando eu tive essa dor de barriga, tomei tantas gotas do medicamento tal e foi tiro e queda..."
Já em outras situações, quando se trata de pessoas mais velhas ou que vivem no interior (pesa também a questão financeira, é claro), aparecem as simpatias.
E o engraçado é que existe simpatia para tudo.
Para criança com bronquite, basta fazer um corte na soleira da porta, da altura exata dela e colocar uns fios de cabelos presos com fita adesiva. Quando o pequeno ultrapassar aquela altura, o mal vai estar curado.
Para cobreiro, uma boa reza é cercar a vermelhidão com tinta de caneta Bic, já é suficiente para impedir o crescimento do mesmo.
Casamento, basta roubar o menino Jesus de Santo Antônio, que a moça arruma marido na certa.
Para descobrir o segredo de alguém, basta beber o restinho da água no mesmo copo que uma pessoa começou a matar a sua sede.
E por aí vai...
Na minha cidade, no interior paulista, quase na divisa com Minas Gerais, ainda hoje é comum o povo buscar nas suas rezas, a diminuição e cura das suas mazelas.
Eu mesmo, desde criança recebi várias benzições e simpatias, pois sempre fui mirradinho e muito doente.
Se hoje não sofro de mau olhado, espinhela caída e quebranto, é graças à minha avó Zilda, uma excelente rezadeira, que ainda continua ativa no seu ofício de olhar pela boa saúde dos filhos e netos (se eu não fosse um celibatário convicto, ela também poderia rezar pelos bisnetos).
De todas as simpatias que eu já fiz ou ouvi, uma que eu tenho até hoje na memória aconteceu com um casal de vizinhos de parede, da casa dessa avó.
Seu Toquinho e dona Maricotinha.
Casal já passando dos quarenta anos de casamento, aposentados e com filhos morando longe, em outras cidades.
Tudo parecia bem tranquilo, quando seu Toquinho, sem motivo aparente parece que se desgostou da vida e começou a beber, frequentando diariamente todos os botecos da rua.
Além de gastar quase toda a sua aposentadoria, chegava muito bêbado em casa, gritando com a esposa, com os vizinhos e, na maioria das vezes, muito sujo e fedido.
A olhos vistos, o povo via um homem outrora exemplar, se definhar.
Dona Maricotinha tentava de tudo.
Muito religiosa, rezava, pedia que o padre conversasse com ele, buscava ajuda com psiquiatras e outros médicos, pedia que os filhos aconselhassem o pai e nada do seu Toquinho parar de beber.
Pelo contrário, quanto mais atitudes tomavam, mais ele se embriagava.
Até que, uma das vizinhas mais antigas, ensinou a dona Maricotinha uma simpatia infalível para o marido parar de beber.
Era necessário comprar uma garrafa de pinga bem vagabunda, tirar o seu rótulo e colocar na garrafa treze penas de urubu.
Isso mesmo encher a cachaça com o negrume etéreo da indefectível ave.
Ela garantiu à esposa do nosso querido bebum, que ele pegaria nojo da bebida e nunca mais voltaria a colocar na boca nenhuma caninha.
Como não restava muita esperança, ela fez direitinho o que a vizinha recomendou e, antes do almoço de domingo, ofereceu um bom copo da "nobre bebida" ao marido.
Seu Toquinho tomou a cachacinha em uma talagada só e repetiu a dose.
Pouco tempo depois sentiu-se um pouco enjoado e foi deitar-se, sem mesmo querer almoçar.
Bom, pelo visto a simpatia deu certo, pois seu Toquinho nunca mais foi no boteco encher a cara.
Agora, fica sempre em casa e pede diariamente para dona Maricotinha mais uma dose daquela "cachacinha dos deuses" que ela conseguiu para ele, naquele domingo...
E haja urubu!

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Jogo de xadrez

A expressão "jogo de xadrez" é bem conhecida do público em geral.
Quando eu a uso, quero mostrar uma situação complicada, com muito estudo para se chegar a uma determinada conclusão.
Também gosto de jogar xadrez.
Faço isso desde pequeno, influenciado por um amigo de infância, filho de um libanês que era dono de uma livraria na minha cidade.
Além dele me ensinar a jogar, também me mostrava livretos com partidas e indecifráveis quebra cabeças sobre o jogo de tabuleiro.
Eu era o seu sparring favorito, mas a persistência me fez evoluir até conseguir vencer o meu mestre em algumas partidas.
Com ele me inscrevi em campeonatos colegiais, chegando até mesmo a ser campeão em equipes, no ano que eu cursei a minha oitava série.
Cresci mais ainda e continuei jogando, me tornando sparring de outros amigos.
No começo da década de noventa, já em Guarulhos, me enturmei com um pessoal que gostava do "bom viver" e também tinha o xadrez como boa opção de desafio.
Eu frequentava muito um bar, no centro da cidade, chamado Taverna, onde reuniam-se os pseudo intelectuais do município, a galera descoladinha, os neo hippies e militantes da esquerda guarulhense.
Em algumas mesas, com um pouco mais de iluminação e mais afastadas da muvuca do bar, eram disponibilizados alguns tabuleiros de xadrez.
Bons papos e bons jogos.
Mas, não pensem que esse ambiente informal trazia alguma informalidade para o jogo.
Pelo contrário, a introspecção e o silêncio próximo a elas era regra inquebrável.
Quase tacitamente as pessoas se comportavam como em algum campeonato do leste europeu.
Eu mesmo, evolui muito naquelas pelejas.
E gostava muito também de ficar estudando os diversos jogos que eram diariamente disputados no Taverna.
Tanto que, em um final de tarde sem ter muito o que fazer, me dirigi ao local para uma boa conversa ou um joguinho despretensioso.
Haviam poucas pessoas lá, nenhuma conhecida, então eu vi dois velhinhos disputando uma partidinha de xadrez, em um surrado tabuleiro.
Fui até eles e fiquei observando.
Minutos se passaram e os dois continuaram atentos ao jogo, erguendo a sobrancelha de vez em quando, enrugando a testa e olhos fixos no tabuleiro, mas sem mexer peça alguma.
Nesse ínterim, eu também atento já tinha planejado diversas jogadas e algumas defesas caso fossem mexidas determinadas peças (tinha um cavalo que poderia trazer problemas a um dos oponentes).
Mais algum tempo se passou e nada de peça mexida.
Comecei a imaginar a veracidade da expressão citada no começo do texto, com provas irrefutáveis do quão complicado é, de fato, o jogo de xadrez.
E nada de movimentos naquele tabuleiro.
Napoleão ao conquistar metade da Europa, talvez tenha gasto menos tempo na sua estratégia.
Mas, os dois não descolavam os olhos da mesa.
Até que um deles, de maneira ríspida, levanta a cabeça, quebra o silêncio e pergunta indignado ao outro:
- "Como é que é, carioca, você não vai jogar não?"
E o oponente, mais indignado ainda:
- "Ué, não é a sua vez?"
Não aguentei!
Fui embora com a ligeira impressão que eles fizeram aquilo, de propósito...

Gol de letra

O futebol é paixão.
Nada de novidade nisso, pois estamos cansados de vivenciar no nosso cotidiano discussões intermináveis sobre esse tema.
Basta ver que ainda sobrevivem aquelas mesas redondas, cheia de comentaristas tendenciosos e muito apaixonados pelos seus times.
No meu trabalho não é diferente.
Depois de um clássico onde o meu tricolor perdeu para um rival, com um gol de letra, quase no final da partida, fui bem lembrado por todos os amigos torcedores de equipes diferentes da minha, do vexame daquela derrota.
Muitas gozações, chacotas e até certa maldade contra a minha letra quase ilegível (me pediram para que eu aprendesse com o jogador do Santos que fez aquele gol).
Raras foram as pessoas que não me sacanearam.
Mas, já envolvido no trabalho, fui fazer uma palestra para os pequenininhos sobre a festa de carnaval, que vai ser realizada no final dessa semana.
Falei das origens do entrudo, dos vários tipos que existem no Brasil, da importância da festa para algumas cidades e encerrei com várias marchinhas tradicionais das décadas de trinta e quarenta.
Ao encerrar a conversa, vem até mim um aluninho do terceiro ano, filho de um amigo e que é santista roxo, me perguntando:
- "Tio, você sabe qual será a minha fantasia no carnaval do colégio?"
Eu, na minha inocência, fiz cara de interrogação e ele tasca, sem dó:
- "De Robinho..."

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Bira

O Bira é um pernambucano boa gente.
Muito falante, cheio de amigos e super solícito.
Onde ele está, o sorriso é farto.
Também é uma pessoa simples. Gargalhando, conta uma história que ele quase comeu o guardanapo do avião, pensando que era tapioca (na sua primeira viagem aérea).
Foi funcionário de um extinto banco público do estado de São Paulo, se transferindo para cá, após o fechamento da agência bancária daquela instituição, em Recife, no final dos anos noventa.
Recife, inclusive, que é a sua terra natal, onde Bira tem muitos amigos.
Dias desses ele foi passar férias na casa dos pais, em Pernambuco, e resolveu pegar uma "corzinha" na Praia de Boa Viagem, aquela que, de vez em quando, um tubarão faz um pequeno lanchinho com algum surfista desavisado.
Temeroso desses ataques, o Bira resolveu ficar bebericando a sua cervejinha, na areia.
Escolheu um local bem tranquilo, ficou ao lado de um carrinho de bebidas, onde um garotinho fazia um churrasquinho bem cheiroso e, assim, o dia foi passando.
Ao seu lado estavam dois estrangeiros, muito alegres e que não paravam de falar, um minuto sequer, provavelmente das belezas naturais e humanas da praia recifense.
Os dois também consumiam bastante na barraquinha onde o Bira se aportara.
Nesse ínterim, o garotinho do churrasco procura o nosso amigo e pede um favor.
Já que ele não falava patavinas de inglês, pediu ao nosso bom pernambucano, que perguntasse aos dois gringos se eles se interessavam por um pouco de farinha.
O Bira ficou meio constrangido, pois mesmo um pouco alto, não gostava muito "dessas coisas ligadas ao tóxico".
Mas, mesmo assim, devido à insistência do garotinho, resolveu arranhar um pouquinho no seu inglês, perguntando baixinho aos dois (sob o olhar atento do menininho).
- "Hei, man! Do you want cocaine?"
O garotinho ao ouvir a palavra "cocaine", deu um vigoroso salto para trás e muito assustado gritou para o Bira:
- "Moço, pelo amor de Deus, não é para oferecer cocaína, não! Era só uma farinha de mandioca para o churrasquinho, que eles acabaram de comprar!"

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Fatalidade

Ambrósio era de fato um sujeito sistemático.
Vivia sozinho nos fundões de um vale escarpado. Por opção própria tinha escolhido aquela vida de quase eremita.
Mas, era extremamente feliz, vivendo longe da insegurança de uma grande cidade e dos olhares maldosos de uma pequena vila.
Cultivava as terras pedregosas do local, com a sabedoria adquirida dos seus antecessores, por isso tinha uma vida, até certo ponto, bem tranquila.
Gostava da sua casa bem arrumada, das tralhas de trabalho bem dispostas na parede do celeiro e dos animais bem tratados.
Nem parecia que morava só e que recebia poucas visitas.
Gostava de Maria Rita, uma viúva também dona de um pequeno sítio nos arredores, só que na parte alta da Serra do Rola Macaco.
Como a vizinha também o olhava com carinho, sempre que podia, ia fazer uma visita respeitosa a ela.
Nunca ia quando ela estava só, só passando pelo local quando os filhos estavam presentes.
Filhos que, por sinal, admiravam e gostavam muito do "seu" Ambrósio.
Num desses domingos frescos de outono, ele resolveu passar parte do dia com a família da vizinha.
Saiu de casa logo cedo e subiu a serra a pé, por um caminho menos perigoso, mas mais longo.
Passou parte do dia com eles, perdendo a noção do tempo.
Ao verificar que já estva tarde, resolveu ir embora, escolhendo um caminho mais curto, que teria que atravessar o vale por uma ponte de madeira, bem precária.
A vizinha preocupada o alertou que com o excesso de tábuas podres, a ponte não aguentava mais do que uma pessoa por vez.
Então, era necessário certificar-se que não haveriam outras pessoas atravessando junto com o senhor Ambrósio.
Despedidas feitas, ele pôs-se a caminhar em direção ao local.
Ao observar atentamente o céu, percebeu que poderia acontecer a ocorrência de chuva no caminho.
Por prevenção, ele voltou à casa da viúva e pediu emprestado um guarda-chuva.
Ao receber o mesmo, voltou mais apressado ainda para o caminho e, ao atravessar a ponte, ela ruiu e seu Ambrósio rolou ribanceira abaixo, para nunca mais ser visto.
Moral da história: "um homem prevenido, vale por dois".

Dia ruim

Tem certos dias, que parece que tudo conspira contra a sorte.
Me lembro bem daquele período de escassez de diversos produtos, que sumiam das prateleiras dos supermercados por conta de um mal fadado plano econômico do governo Sarney (lá pelos idos da década de oitenta).
Geralmente, acontecia com os produtos de primeira necessidade, como óleo de soja, arroz, farinha de trigo, entre outras coisas.
Era necessário fazer um pequeno estoque, quando algum desses itens aparecia nas gôndolas dos mercadinhos.
Como todos tinham a mesma ideia, geralmente gerava muito tumulto, intermináveis filas e um aumento momentâneo de preços, que garantia a quem se predispunha a pagar, a certeza de conseguir o bem de consumo. Em bom português, chegava a haver cobrança de ágio para quem quisesse ter a preferência na compra.
Um dos produtos que mais trouxe problema foi a carne bovina que, devido a baixos preços, sumiu dos açougues.
O governo chegou a confiscar "bois nos pastos".
Parecia aquele trecho de um cordel nordestino onde o fazendeiro se dizia dono do boi e o animal respondia que ele não era dele e sim "do Banco do Brasil".
No caso, os bois eram "do Brasil..."
Como na casa do seu Isaías não se conseguia fazer uma refeição decente, sem ter metade do prato, ocupada por um suculento bife, esse período acabou trazendo muitos problemas para o seu cotidiano.
Com a falta de carne bovina na sua cidade, ele resolveu ir até uma cidadezinha dos arredores, quase na divisa com Minas Gerais, para adquirir o precioso produto.
Ele pegou a sua potente Variant azul, colocou o filho pequeno no banco traseiro, ajeitou a caixa de isopor com uma razoável quantidade de gelo e se pôs na estrada, para percorrer trinta quilômetros em busca de um bom pedaço de contra-filé.
Logo na saída da cidade, o pneu traseiro estourou.
Debaixo daquele sol esturricante do interior paulista, fez a troca do mesmo.
Seria rápido se o macaco não prendesse um dos dedos dele, resultando em um hematoma significativo e gritos dignos de uma premiação de Cannes.
Reestabelecida a ordem, um trânsito infernal fez a viagem de meia hora, em uma esburacada pista simples, durar mais de três horas (havia tombado um caminhão de resina na estrada, causando um "pouquinho" de tumulto).
Mas, haviam chegado no local.
Ao sair do carro para sacar dinheiro no banco (precisava de uma boa quantia), o pai incumbiu o garotinho de olhar o precioso carro.
Com medo de ser assaltado, o filho desceu e trancou minuciosamente todas as portas, abaixando o pino da trava e batendo com força as mesmas (aquele modelo não precisava da chave para fechá-las), com a preocupação de certificar que tinha subido todos os vidros.
Orgulhoso do seu zelo, ele ficou embaixo de uma sete copas, só esperando o seu pai voltar do banco.
Ainda bem que o menino tinha feito isso, pois o local estava muito cheio e o pai demorou bem mais de uma hora na fila do mesmo.
Ao voltar para o carro e perceber que estava totalmente fechado (e bem fechado por sinal), o digno senhor quase teve um ataque cardíaco, pois a chave havia ficado na ignição, fato não percebido pelo menino.
Mais meia hora tentando abrir o carro, com a ajuda de uma multidão de curiosos, o nobre progenitor decidiu deixar a tarefa para depois, já que estava tarde e ainda não tinha chegado à casa de carnes.
Após andar mais um pouco até o açougue, teve uma surpresa, pois a fila estava imensa.
Parecia que a sua cidade inteira tinha pensado a mesma coisa e estava em peso no município vizinho para comprar um filezinho.
Mais uma hora naquela fila, sob o sol de final de tarde, com uma baita fome, já que ambos não haviam almoçado, finalmente chegaram ao balcão.
Um impaciente açougueiro os avisou que parte do estoque já tinha sido vendido e que somente havia "carne de segunda".
O pai se negou a voltar para casa de mãos abanando, então resolveu comprar uma peça de coxão duro, mas com preço de picanha (lembra do ágio).
Já voltando para o carro, bem desanimado, pensando em uma maneira de tentar abri-lo sem que tivesse que arrombá-lo, disse uma das poucas frases do dia, em que não havia palavrões:
- "Bom , pelo menos tudo de ruim que podia acontecer, já aconteceu!"
Então, começou a chover...