segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Fé demais

Essa me foi contada por um amigo lá de Belo Jardim, o bom pernambucano: Vicente.
Como bom nordestino, sempre teve na sua família pessoas um pouco mais religiosas do que o costume.
Havia devoção de sobra para São Francisco, Padre Cícero, Frei Damião (tinha gente lá no agreste, que me achava parecido com ele, só de sacanagem, é claro) e outros tantos beatos e santos.
Mas, um deles se destacava, pelas suas crenças e fé.
Era o seu tio Januário.
Esse sim, era um caboclo de respeito.
Virtuosíssimo ao extremo, defensor da moral e dos bons (e tradicionais) costumes, ligados a fé católica, é claro.
Além de frequentador assíduo da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, de todas as novenas e trezenas realizadas nas casas dos paroquianos, também adorava as benzições tão comuns no interior do nosso país.
Benzia-se tudo, quebranto, mau olhado, espinhela caída, papeira (a nossa caxumba), bronquite, cobreiro e até alguns animais domésticos que adoeciam.
Como todos sabemos que, com o aumento da idade, a tendência é o crescimento da nossa fé, com tio Januário, não poderia ser diferente.
Na medida em que os anos iam passando em progressão aritmética, as suas crenças aumentavem em progressão geométrica.
Depois dos sessenta, acreditava, inclusive, que ele era um homem santo!
Isso mesmo, fazia crer que a sua conduta ilibada, as suas orações diárias (matinais, vespertinas e noturnas, por sinal) e o seu passado incólume de erros, era o tripé necessário para uma beatificação futura.
Sonhava, inclusive, com os milagres pós-mortem que ele operaria.
Lógico que a família era totalmente cética em relação a tudo isso e não apoiava em nada as esquisitices do sexagenário parente.
Quando a situação começou a deixar de ser apenas cômica, as filhas e as netas começaram a cobrar do tio Januário uma menor exposição da família junto a pequena comunidade, frente a tantas excentricidades.
Isso mexeu muito com o fervoroso devoto de Padre Cícero.
"Como assim? Por que tanta descrença e inveja?"
Haveria de se produzir uma prova da elevada espiritualidade dele!
Ele teria que mostrar a todos aqueles fariseus, que a sua fé era capaz de superar qualquer obstáculo e que aqueles que duvidavam da sua santidade, haveriam de se envergonhar de tanta descrença.
Avisou a família que iria iniciar dentro do seu pequeno quarto, uma vigília de sete dias e sete noites, passando somente a pão e água, além de muitas orações também.
E, depois desse período sabático, provaria a todos a sua santificação.
A família ficou muito preocupada, mas aceitou a resolução do seu patriarca.
Uma semana se passou e tio Januário saiu do quarto com a mesma seriedade que entrara.
Reuniram-se os familiares e vizinhos ao seu redor e aquela figura esquálida deu a sua sentença: "que todos presentes estavam abençoados e deveriam se redimir dos seus pecados."
"Que sem fé a humanidade se perderia..."
"E que, para provar a sua elevação espiritual, iria se abraçar no pé de mandacaru que tinha nos fundos da sua casa."
O povo ficou em polvorosa.
Será que a pacata Belo Jardim, haveria de ter mesmo, um santo? Será que Deus perdoaria tanta descrença e zombaria com aquela honrada figura?
E o cortejo foi formado, da sala da casa de tio Januário até o quintal da mesma.
Tio Januário proferiu meia dúzia de palavras (o povo podia jurar que ele tinha falado em latim) e saiu correndo em direção ao imenso cacto que já existia há mais de uma dezena de anos.
O povo de maneira fleumática, apenas soltou um "oh", coletivo, e viu o ancião se abraçar ao Mandacaru, com toda a força que ainda lhe restava.
Não deu tempo nem de se ouvir um segundo oh, das pessoas presentes, pois o que cobriu qualquer som foi o grito agudo e estridente de tio Januário.
O desespero dos genros em tirá-lo de lá, foi substituído pelo desespero das filhas em tentar retirar os espinhos de cacto, do seu corpo.
Mas, depois de três dias de internação na Santa Casa de Caruaru, ele sobreviveu.
Bom, se Belo Jardim perdeu um santo, pelo menos acabara de ganhar uma lenda...

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