sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O coronel e o sanfoneiro

O termo coronel, além da patente militar, designa também aquele fazendeiro poderoso, geralmente do interior do nordeste, cercado de capangas, que fazia valer as suas vontades, munido, principalmente, do uso da força.
Em Serra Talhada, município do sertão de Pernambuco, na primeira metade do século XX, tinha um desses folclóricos coronéis.
Além de rico proprietário de terras, era também o juiz de paz da cidade e o principal eleitor do prefeito e dos vereadores daquele município (via "voto de cabresto", é claro).
Todos na cidade, sem exceção, o respeitavam.
Jamais era contrariado.
Conta a sabedoria popular, que em uma noite, já repousado na casa da sua grande fazenda, ouviu ao longe uma música que o incomodou.
Imaginem só, um coronel daquela envergadura, jamais poderia ter o seu sono atrapalhado por um forró qualquer.
Ainda mais que ele não se lembrava de ter dado autorização para nenhuma fazenda vizinha fazer festa!
Então, ele se dirige até a cozinha e chama um de seus capangas:
- "Severino! Vá até o vizinho e fure o fole dessa sanfona, cabra! Não quero saber desse arrasta-pé!"
E foi Severino, bem rapidamente, acompanhado da sua Schimdt 45.
Passou-se mais de meia hora, a música não cessou e nada do Severino voltar.
O coronel mais irritado ainda, chama um segundo jagunço:
- "Chico! Eu quero esse arrasta-pé encerrado, agora! Vá lá furar o fole dessa sanfona! Rasgue o couro da zabumba e diga que fui eu quem mandou! E volte logo, seu abestado!
O rapaz saiu mais rápido ainda que o anterior, armado até os dentes, cavalgando em disparada em direção ao local que vinha o som.
Mais meia hora e nada do forrozinho acabar. E nem Chico voltar.
Aí o coronel se aborreceu de verdade. Avisou a mulher que ele mesmo acabaria com aquela festa ou então não era um "cabra macho", que não honraria usar as calças que vestia.
Chamou mais três jagunços e foi, decidido, a "furar o fole daquela sanfona".
Duas horas depois, a mulher apreensiva, pois nada da música acabar, pelo contrário, parece que a festa tinha se animado mais, ela vai até o alpendre da casa e vê o seu marido, o coronel, voltando cabisbaixo, mais os cinco capangas, e pergunta, surpresa:
- "Oxe, marido! Você não disse que ia acabar com aquela festa?"
E o coronel, resignado:
- "Pois então, minha santinha! E não é que a festa tava boa, com uns músicos bem afinados, principalmente o sanfoneiro, que era justamente o compadre Lampião..."

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Turco Salim

Muitas cidades do interior paulista receberam grupos significativos de imigrantes sírios e libaneses.
Na minha, não foi diferente.
Só que, ao chegar no Brasil, no começo do século vinte, esses grupos árabes possuíam passaporte turco, pois os seus países pertenciam ao grande império Otomano.
Então, a população sempre usava o gentílico turco, para se referir a eles.
Apesar de não gostarem, acabaram se acostumando (na realidade, eu nunca ouvi falar de um turco mesmo, nascido na Turquia, aqui na minha cidade).
Cheguei a conviver um pouco com algumas dessas famílias, pois estudava em uma escola que tinha alguns filhos e netos desses imigrantes.
O que mais me chamava a atenção era o turco Salim, que desde que tinha chegado ao Brasil, tinha feito de tudo um pouco. Já mascateou, teve atacado de cereais, máquina de limpar arroz, loja de tecidos e no fim, vivia de alguns imóveis que alugava em um bairro antigo aqui da cidade.
Negociante hábil, com fala mole, carregada de um forte e característico sotaque, o turco Salim impressionava a todos com a facilidade de obter vantagens em tudo que comprava e vendia.
Uma certa vez, ao acompanhá-lo à cidade de São Paulo, onde iria inspecionar a chegada de uma carga de tecidos que desembarcara em Santos e estava estocada no Brás, tive mais uma prova dessa sua lábia, desse seu jeito peculiar de fechar um negócio.
Na Rodovia Anhanguera, um pouco antes de Jundiaí, existiam muitas banquinhas que vendiam uvas, em caixotes de madeira.
Passando por diversas delas e com uma vontade imensa de aplacar o seu desejo por aquela fruta, resolveu parar naquela que ele achou ser a maior, a que possuía a melhor estrutura.
Descemos do caminhãozinho e ele se dirigiu ao dono da barraquinha.
Perguntou o preço da caixa grande de uvas.
O homem respondeu que custava dez cruzeiros.
O turco Salim achou interessante o preço e perguntou quanto ele faria se ele comprasse duzentas caixas.
Ao ver o caminhão parado o homem se animou e disse que daria um abatimento de trinta por cento.
O turco sem modificar a sua expressão, disse que tinha gostado do desconto, pegou uma caixa, deu sete cruzeiros ao vendedor e foi indo em direção ao veículo.
O dono da banca, logo chamou a sua atenção:
- "Mas, o senhor não disse que levaria duzentas caixas?"
E Salim, sem pestanejar:
- "Isso, mas antes eu 'vai' levar uma, só para 'exberimentar'..."

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O passarinho

Quando criança era comum ver pessoas que criavam passarinhos em gaiola.
Sei que isso é maldade, mas sequer pensávamos nisso, naquela época.
Inclusive eram comuns lojas que vendiam tudo o que era necessário para uma boa criação, desde gaiolas, arapucas (para capturar os pobres bichinhos), todo tipo de ração e grãos (a dieta variava de acordo com a ave) e até mesmo a venda das próprias aves.
Esse tipo de comércio se espalhava por toda a cidade e era abastecido pela molecada que vendia e comprava os bichinhos.
Meu pai mesmo, tinha um pássaro preto, criado na gaiola desde filhote, que arrepiava todos os pelos da cabeça, quando alguém chegava perto e se oferecia "para catar piolho..."
Hoje, ele abomina ver alguma ave presa numa gaiola, inclusive proíbe qualquer pessoa de capturar passarinhos na sua chácara.
Mas, voltando ao que eu estava comentando, na minha infância éramos bem politicamente incorretos e o local que mais me fascinava era a loja de venda de passarinhos.
Na minha rua tinha o comércio do seu Juquinha, quase em frente à minha casa.
Ele se orgulhava de possuir os melhores canarinhos da região.
Tratava dos bichinhos com o maior cuidado, sendo várias vezes finalista de concursos de canto e beleza dessas aves.
Se alguém tivesse algum exemplar com um belo trinado, era só procurar o seu Juquinha e oferecer um preço razoável, que ele comprava.
Os melhores e mais afinados, ele sequer vendia.
Sabedor disso, um tio de meu pai, levou o seu canário para vender ao procurado comerciante.
Seu Juquinha ao ouvir a ave cantar ficou impressionado.
Que afinação, que peito, possuía aquele passarinho.
Ficou encantado e quis arrematar, na hora, com gaiola e tudo.
Mas, ao observar mais um pouquinho a ave, ele percebeu que ela tinha uma perninha bem mais curtinha que a outra.
E, para obter alguma vantagem, disse ao tio de meu pai:
- "Só dou metade, pois o canarinho é manco!"
Mas, atentando-se ao óbvio, meu parente logo arrematou:
- "Mas, o senhor quer o canarinho para cantar ou para jogar futebol?"
Não houve negócio e, felizmente, essa minha fase de apreciar canto de passarinho na gaiola, passou logo.
Hoje, prefiro ouvi-los na natureza...

Tia Geralda

Tia Geralda nasceu e sempre viveu entre a vila de Capivari da Mata e a cidade de Ituverava.
Foi a penúltima dos onze filhos da vovó Tonha.
Depois de casada com tio Chico, nunca mais saiu das terras que passaram a viver, nem depois da morte dele, em 1970, ano em que nasci.
Portanto não cheguei a conhecê-lo, mas conheci muito bem a tia Geralda.
Enquanto criança e no começo da adolescência, passei boa parte das minhas férias naquele sítio.
Inclusive, quando digo para algumas pessoas que eu me criei na roça, foi devido a todas aquelas estadas.
Ela sempre nos recebeu com muita alegria e, apesar da vida simples, ela era muito rica em felicidade.
A nossa Variant azul, carregada de gente, ao adentrar a porteira daquelas terras sempre era bem vinda.
Me lembro bem de uma cena comum: o meu pai chegava buzinando para espantar os cachorros, parava o carro e a minha vó Zilda (irmã da tia Geralda) descia rapidamente. Da casa, saía tia Geralda, debulhando uma espiga de milho e as duas se encontravam no meio de uma multidão de galinhas e frangos, onde a minha avó sempre escolhia aquela que ela gostaria de ver na panela durante o almoço.
E só depois disso, é que elas se cumprimentavam...
Se abraçavam gostoso, como se uma vida inteira as tivessem separado.
Sempre era assim, a ponto de eu já saber mais ou menos o frango que seria escolhido pela minha vó.
Não tinha energia elétrica lá.
Mas, nem precisava, pelo menos para mim, é claro.
E olha que eu adorava ver televisão. Mas, nunca senti falta, na casa dela.
Eu gostava de passear à noite, com as lamparinas e ver a sombra que produziam nas paredes da casa. Gostava de ver o vulto das pessoas conversando ao redor do fogão à lenha. Algumas feições se modificavam. O cigarro de palha do primo Francisco (filho da tia Geralda), que insistia em se apagar, as modas de viola no rádio a pilha, o bolinho de polvilho frito em óleo bem quente e as boas histórias que eu ouvia, ainda são bem fortes na minha memória.
Histórias, inclusive, que eu acreditava. Principalmente se fossem contadas para me assustar.
Como a do lobisomem que correu ao redor da casa, a da mula sem cabeça que aparecia em noites claras, aquela do choro de criança na mata, próxima do rio, da porteira que abria sozinha ou de aparições de pessoas que já morreram.
É claro, que eu jamais me aventurava fora da casa, quando escurecia.
Com aqueles olhinhos azuis, escondidos sob as lentes grossas dos seus óculos é que ela me mostrava grandes lições de paciência e afeto.
"Deixa o menino...", era a frase que eu mais escutava, quando as pessoas insistiam em achar que as minhas perguntas e peraltices, atrapalhavam a rotina do sítio.
Foi lá que eu vi, o meu avô Antônio construir um paiol de madeira, sem usar um prego sequer.
Que aprendi um pouco de física também, ao descobrir o engenhoso sistema de abastecimento de água, que trazia o precioso líquido da mina, localizada a dois quilômetros de distância para dentro de casa, utilizando-se somente da força da gravidade, via declividade do terreno.
Era uma água fresquinha e boa, que passava por uma torneira, que eu insistia em fechar, mas que sempre deveria ficar aberta, para servir também às galinhas, no quintal.
Foi lá que também me ensinaram a andar a cavalo.
Colocava-se um tapete e uma corda em um pangaré bem mansinho, que era usado para puxar carroça, que eu me sentia um cavaleiro medieval ou um mocinho de filme de bang-bang.
Geralmente, andava com a minha irmãzinha na garupa.
Inclusive, protagonizei uma dessas histórias de assombração, quando estava com a Eliane, a minha irmã do meio, andando em uma égua com seu potrinho do lado, em uma estrada, fora do sítio.
Sem motivo aparente ela empacou, o potrinho ficou muito agitado e, juro por Deus, ouvimos uma voz distante gritar: "desce dessa égua, seus burros..."
Após uma gargalhada estridente o animal saiu em disparada, só parando na porteira do sítio.
Todos riram, quando eu contei, mas até hoje, ainda não consegui explicar o que aconteceu.
Eu adorava pescar no ribeirão. Sempre pegava uns lambaris, que eram bem limpos, passados no fubá e fritos em óleo bem quente.
Todos comiam, menos eu.
Enquanto criança, fui muito enjoado para comer e não adiantava dizer isso para a tia Geralda, pois ela pensava que eu não gostava da comida dela.
Na realidade, tirando o que a minha mãe fazia (e só algumas coisas) eu não gostava da comida de ninguém.
Felizmente não sou mais assim, mas a tia Geralda nem ficou sabendo disso.
Porque depois da adolescência, nunca mais voltei para lá.
E ontem fiquei sabendo que ela nos deixou.
Ao chegar no céu, deve ter sido bem recebida.
- "Entra, Geralda, entra..."
E eu nem consegui me despedir e lhe agradecer, pois parte do que sou, foi o que eu vivi no "sítio da tia Geralda".
Obrigado, tia...

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Oratória

Essa quem me contou, foi o meu amigo Nei.
Em uma dessas noites frescas de primavera, ao invés de pedir a tradicional pizza de sábado à noite, via tele-entrega, resolveu buscá-la na pizzaria do bairro.
Avisou a esposa, pegou o carro e dirigiu até o estabelecimento.
Pedido feito, enquanto aguardava, tomou uma cervejinha.
Sempre alegre e comunicativo, entrou na conversa de alguns bebuns que se encontravam por lá.
Até que, entra um rapaz com o capacete na mão, provavelmente perdido e pede informações sobre determinada rua, bem conhecida de todos.
Um solícito cliente, de pouca instrução e tamanho avantajado, logo pôs a explicar ao motociclista, o caminho que ele deveria seguir para chegar a tal endereço:
- Você deve seguir em frente, nessa mesma rua e, ao chegar na "oratória", virar à direita...
Claro que após gargalhada geral o dono da pizzaria corrigiu o cliente, de maneira pouco amistosa:
- É rotatória, seu burro, não é "oratória", não!
Todos no local, quase se mataram de tanto rir, o que deixou o homem bem irado.
Então, ele se vira para o nosso amigo, o Nei, e pergunta:
- Ô palhaço, você está rindo do quê?
E bem rapidamente, com aquele pensamento ágil que é característico do nosso franzino protagonista, ele arremata:
- Eu tô rindo, pois isso aconteceu comigo, ontem mesmo. Ao explicar o caminho de casa para um conhecido, eu também chamei a rotatória de "oratória"...
E nem mesmo esperou a pizza.
Se mandou, voltando para casa, contornando a famosa "oratória"...

Quarenta e oito horas

A minha primeira e única viagem do Nordeste para São Paulo, foi muito marcante.
Tão marcante que eu nunca mais me arriscarei em tal empreitada.
Começou em Serra Talhada, pequeno município pernambucano, lá pelos idos dos anos 90, do século passado (parece coisa bem antiga mesmo, quando se diz "no século passado"...).
E como não poderia ser diferente, a bordo de um Tribus convencional da Itapemirim, sem ar condicionado.
Ao entrar no ônibus, percebi que ele vinha de outras cidades, já que muitas poltronas já estavam ocupadas.
Assim, conheci logo de cara o meu companheiro de viagem, ou seja, a pessoa que teria que passar dois intermináveis dias ao meu lado.
Antes de embarcar, fiz aquele tradicional jogo de advinhação, tentando imaginar a pessoa que sentaria na outra poltrona, ao meu lado.
É óbvio, que pensei em uma loira oxigenada, com dotes louváveis e muita carência.
Errei com alguma distância, pois ao andar pelo corredor, percebi que quem ocupava a poltrona da janela era um rapazinho magrelo, com jeito de matuto (no decorrer da viagem, fiquei sabendo que ele nunca tinha saído de sua terra natal).
Fui recebido com um gesto cortês, logo nos apresentamos e, como primeira impressão, achei que não seria tão ruim assim.
Após os acenos tradicionais de despedida, com o movimentar do ônibus, resolvi "puxar assunto".
Disse que o dia já começara quente e, para o meu azar, eu tinha esquecido de comprar água para a viagem.
Juro por Deus, que eu nem estava com muita sede e sabia que a próxima parada seria em Arcoverde, umas duas horas dali.
Era só para iniciar uma conversa mesmo!
Mas, para a minha surpresa, o rapazola me mostrou que estava prevenido, pois trazia uma garrafa cheia d'água.
E, claro, me ofereceu.
Gelei, pois ao me mostrar o precioso líquido, com a cor um pouco alterada (juro que era um marrom bem clarinho), não pude disfarçar a minha reação de reprovação.
Por não aceitar, praticamente o ofendi, já que ele me garantiu que era limpa, algo que não tive coragem de contestar, mas reforcei que eu estava "sem muita sede" (e mesmo que estivesse, jamais eu confirmaria...).
Começara mal a "minha odisseia"...
Algum tempo depois o matutinho desamarrou a cara e voltou a prosear comigo, me mostrando algumas plantas que iam passando pelo caminho.
Já esquecido da mágoa, me ofereceu um pedaço de doce de jaca, fartamente cortado pelas suas mãos e com o polegar afundado naquele pedaço meio esverdeado (essa é a cor de verdade, dessa iguaria).
Puxa vida, eu já tinha recusado um gole d'água e, se eu não aceitasse aquele pedaço de doce, acho que não passaria vivo nem de Recife, pois a oferta foi feita de maneira bem impositiva.
Ao aceitar, pus em risco perder o controle natural das minhas funções intestinais, mas ganhei um "companheiro de viagem", um amigo que não mais se constrangeu com qualquer grosseria minha.
Dia se acabando, novos embarques e, em poucas horas, eu já conhecia boa parte dos passageiros do ônibus.
Inclusive aquele sentado na última fileira de poltronas, com um rádio enorme, que tocava no mais alto volume uma mesma fita cassete, gravada em alguma seresta de um barzinho chinfrim, em alguma cidade minúscula do agreste pernambucano.
Vocês não vão conseguir entender o quanto eu gostava daquilo. Imaginem um desafinado cantor que, junto a um teclado mal programado que ele provavelmente não sabia tocar, cantava alguns sucessos sertanejos do momento (isso mesmo, sertanejos).
Provavelmente o show foi gravado pelo mesmo rádio que o reproduzia (lembro novamente, em altíssimo volume), dentro do ônibus.
O impressionante é que o cassete (leia-se K7, por favor) só possuía uma meia dúzia de músicas, quase monorrítmicas.
Noite vem, dia amanhece, depois de esgotada a paciência de quase todos os passageiros, resolveram esconder a radiola do sujeito no bagageiro do ônibus, em uma das paradas.
Ao retornar para o mesmo, o nosso DJ, ficou inconformado ao não encontrar o seu precioso companheiro.
Gritou, esbravejou e só conseguiu que contássemos o ocorrido, após ameaçar todo mundo com a "peixeira" que dizia trazer na bagagem.
Se estava ou não armado, eu nunca descobri (juro que pelo silêncio, até "pagava para ver"), pois o motorista resolveu acabar com a bagunça, devolvendo o rádio para o nosso algoz.
Para evitar novas reproduções dos martirizantes sucessos da seresta (ele disse que era a única fita que trazia), fizemos ele concordar em comprar uma nova, na parada seguinte.
Não demorou muito e chegamos em Vitória da Conquista.
Nesse ponto de apoio, existia um vendedor ambulante que tinha todos os gêneros musicais e cantores à disposição, em boas cópias genéricas.
Fizemos "uma vaquinha" e pedimos que o nosso valente passageiro, fizesse a escolha de uma delas.
Ele ficou com uma do Roberto Carlos.
Voltamos para o ônibus, com a esperança de ouvir alguns bons e antigos sucessos do rei, mas, infelizmente, era aquela fase das homenagens.
O Roberto fazia música para os caminhoneiros, solteiras, gordinhas, etc.
E, tinha sido comprada a fita com a "música da gordinha".
O camarada só escutava essa música. Ia e voltava várias vezes, na mesma faixa.
"(...)Coisa bonita, coisa gostosa, quem foi que disse que tem que ser magra para ser formosa?(...)"
Confesso que preferia o tecladinho do outro cantor que ele trazia.
A nossa sorte foi que ele conseguiu atrair a atenção de uma jovem senhora, que o distraiu no restante da viagem, fazendo-o esquecer um pouquinho daquela "caixa de abelhas" que reproduzia o melhor da nossa MPB.
E nem agradeci a aquela heroína por tal feito...
Quando a viagem já se encaminhava para a sua segunda metade, com o calor quase insuportável e o balanço inconveniente do veículo, devido à quantidade exagerada de buracos nas estradas, a molecada resolveu aprontar.
Os diabinhos resolveram fazer uma guerra de siriguelas maduras, dentro do mesmo.
O cheiro da fruta, somado ao odor característico do banheiro sem limpeza (e muito usado), produziu um aroma indescritível.
Resultado disso tudo: chegando em Teófilo Otoni, eu peguei parte da bagagem e disse ao motorista que iria desembarcar ali mesmo.
Fui convencido a voltar para o ônibus e Minas Gerais perdeu um pretenso habitante, pois se eu descesse, nunca mais voltaria a entrar em nenhum outro meio de transporte coletivo terrestre.
Mas, depois de mais de quarenta e oito intermináveis horas, consegui desembarcar no terminal rodoviário de São Paulo.
E, ao ser recebido pelo cheirinho característico do Rio Tietê, pela enfumaçada cidade e pelo trânsito caótico da Marginal, me deu um pouquinho de saudade daqueles dois dias...

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Tia Neusinha

Tia Neusinha era muito sentimental.
Desde criança tinha problemas com o seu alto grau de ciúme em relação às outras meninas da casa.
Adolescente, se achava inferiorizada, devido ao seu corpo que não se desenvolvia como o das outras meninas da mesma idade.
Mesmo assim, com uma auto estima mais baixa que o normal, capturou o coração do Chico de Maria Alva, um rapaz trabalhador, que morava na área rural da vila de Capivari da Mata.
Casaram-se e foram morar em uma bela casinha construída nas terras do seu sogro.
Como ela era filha de pequenos agricultores que tiveram que se mudar para a cidade, com as crianças ainda pequenas, não estranhou em nada, aquela nova rotina.
Mas, tia Neusinha, mesmo casada com um bom homem, levou para a roça, as suas crises de inferioridade.
Com o passar do tempo, com o isolamento do local, a distância da família e a não formação de uma prole, ela foi caindo em depressão profunda.
Mesmo tio Chico fazendo de tudo para agradá-la, não conseguia uma boa resposta.
Inclusive, tia Neusinha, passou a falar constantemente que a vida não valia a pena.
Isso preocupou e entristeceu profundamente tio Chico.
Ele procurava não a deixar sozinha. Mesmo quando tinha que ir para a cidade, colocava alguém tomando conta dela.
Até que, em um certo dia, já cansado daquela situação, de tantas queixas e reclamações, tio Chico foi até o fogão a lenha, onde tia Neusinha mexia com o torrador de café (uma bola enorme que tinha que ser virada constantemente sobre as brasas) e discutiu ferrenhamente com ela, exigindo uma mudança de postura, uma reação.
Pela enésima vez, ele ouviu dela que a vida não prestava e que ela queria se matar.
Claro que, pela quantidade de vezes que ele já tinha ouvido falar na palavra suicídio, nem deu bola para tal ameaça.
Tia Neusinha, então, descansa o torrador de café sobre a mesa e sai correndo em direção à mata, dizendo que vai se jogar no ribeirão.
Tio Chico não acredita e fica impassível na varanda, por alguns minutos.
Mas, como a preocupação aumenta, ele sai em direção ao local que ela disse que se jogaria e a encontra paradinha, sentada em uma pedra na beira do rio.
Ele, ironicamente, lhe pergunta o porquê de não ter se jogado no rio e ela, com um jeitinho matreiro, cheia de razão lhe explica:
- "Você não viu que eu acabei de torrar café!"
Muito prevenida, a minha tia Neusinha. De fato, cair na água com o corpo quente, poderia lhe fazer mal, lhe causar uma constipação...

O maestro

De tão verdadeiras, algumas histórias parecem surreais.
É o caso do chefe da retreta da cidadezinha de Quimbuquira do Sul, lá pelos idos da metade do século dezenove.
Ele nasceu e cresceu naqueles rincões e teve acesso a uma rica instrução educacional, promovida por uma ordem religiosa francesa, estabelecida naquela região, algumas décadas antes.
Aprendeu também com os padres o ofício de padeiro, mas se destacou mais pelo ouvido apuradíssimo que possuia.
Então, passou, automaticamente, para as aulas de música.
Tinha uma habilidade incrível e aprendeu, por isso, a tocar vários instrumentos.
Sem frequentar nenhum conservatório, usando apenas o seu autodidatismo e a boa vontade de meia dúzia de padres músicos, tornou-se regente de uma pequena bandinha que foi formada em solo Sulquimbuquirense.
Com o retorno da ordem clériga para a França, passou a sobreviver das aulas de música que dava em sua casa, além de uma pequena contribuição que a prefeitura lhe oferecia para reger a bandinha municipal (que ele mesmo tinha formado).
Foi a figura máxima da cidade, em termos musicais, por longas décadas.
Apesar da sua fama regional, nunca tinha se aventurado fora das cercanias da sua terra natal.
Ao longo da sua vida, fez muitos estudos musicais, com o canto dos pássaros, o som da chuva, do vento e dos rios. Compôs uma obra respeitável, sempre tentando aprimorá-la, ao máximo.
Mas, ao mesmo tempo que aumentava a sua curiosidade dos sons do entorno, diminuia a sua audição.
Sofria do mal que acometeu Beethoven: a surdez.
Já não conseguia mais reger, compunha com muita dificuldade e interagia menos ainda com as pessoas.
Foi se isolando.
Até que, já no começo do século vinte, chegou em Quimbuquira do Sul, uma extensão da linha férrea, para escoar o café produzido na região.
Os munícipes aguardaram com ansiedade a viagem inaugural da Maria Fumaça.
O velho maestro também, causando espanto nas pessoas mais próximas esse seu súbito interesse naquela novidade.
Justo ele, que era arredio a essas modernidades, que chegavam da Europa.
Dia da inauguração da estação e a pequena população se concentra próxima a linha do trem.
Tinha tudo para ser um dia feliz, com a bandinha musical tocando os dobrados tradicionais, antes do discurso do prefeito e todos com a sua melhor roupa.
Mas, a cidade fica perplexa ao ver o maestro correndo em direção ao trem, que também estava em movimento e vê, estarrecida, a perda do seu velho regente que, por conta da surdez, morreu ao se aproximar muito da máquina, pois queria saber o tom do seu apito.

Mulher valente

Eram dois amigos de infância, da mesma idade, que cresceram juntos, se apaixonaram antes dos quinze e casaram-se antes dos vinte.
Vieram antes dos vinte e cinco para São Paulo, fizeram muitas amizades e antes dos trinta já tinham um casal de filhos.
Até então, o marido tinha passado por algumas crises financeiras e a esposa, sempre fiel, às prerrogativas do matrimônio, manteve-se firme, ao seu lado.
Mas, antes dos trinta e cinco, ele começou a perceber que aquela mulher doce e compreensiva, que estava ao seu lado desde a primeira idade, começava a transformar-se em outra pessoa.
Estava mais impaciente, menos carinhosa, começava a gritar com mais frequência com ele e com os filhos, brigava muito com a vizinha da direita (tampouco se entendia com a da esquerda), ou seja, a idade da loba não estava lhe fazendo muito bem.
Na mesma proporção que ele ficava mais compreensivo com aquela situação, ela ficava mais brava ainda.
Deu até para implicar com os amigos dele.
Não podia mais beber aquela cervejinha após o futebolzinho de sábado, que ela já brigava.
Responder os recadinhos do orkut, então nem pensar!
Levar algum amigo para almoçar em casa, era risco iminente, principalmente se ela estivesse na véspera "daqueles dias".
Até que, um dia, antes dos quarenta, ele já cansado daqueles ataques de histeria e muito influenciado pela conversa de meia dúzia de amigos, lá da padaria, resolveu estabelecer uma mudança drástica.
Teria que mostrar a ela, quem, de fato, mandava naquela casa.
Em nome da sua supremacia masculina que, hereditariamente, o colocava como chefe daquele "desequilibrado lar", deveria fazer o que bem lhe desse na cabeça, no horário que quisesse e com quem tivesse vontade (sem quebrar a fidelidade consagrada pelo matrimônio, é claro).
Escolheu um sábado de TPM para provar o quanto isso deixava de ser importante para ele e foi jogar o seu futebol costumeiro.
Ficou até bem tarde, enchendo a cara com os amigos e não atendeu nenhuma ligação dela, que só confirmou onde ele estava, depois que passou pela padaria.
Chegou já bem tarde em casa e levou um dos seus amigos para almoçar (pelo correr do horário, parecia mais um jantar).
Ela os recebeu de cara amarrada, mas não disse nada. Parecia até mesmo compreender a revolução que estava em curso, naquele lar.
Ele tomou mais confiança e, sentado à mesa, pediu que ela o servisse.
Pacientemente, ela fez o seu prato.
Antes de começar a comer, ele percebeu que não havia o tradicional feijão, para acompanhar o arroz com o bife acebolado.
Ao fazer a reclamação para a esposa, o amigo viu, perplexo, ela se levantar da mesa, ir até a despensa, pegar a lata cheia do precioso grão e atirar com toda a força no peito do chefe da casa.
E, ainda por cima, ela ironizou; "tá aí, o seu feijão".
Gritaria geral, bate boca na cozinha, o amigo para não interferir resolveu sair para a área de serviço.
Pouco tempo depois, silêncio total.
O amigo volta, preocupadíssimo, com medo do nosso herói ter perdido a cabeça e cometido alguma besteira e vê uma cena surreal.
O nosso valente mocinho estava agachado, sozinho, pegando os caroços de feijão espalhados pelo chão que, pacientemente, devolvia à lata, amassada pelo impacto na sua caixa toráxica.
E, de cabeça erguida e cheio de razão, arremata:
-"Meu amigo, a sorte dela foi o feijão não estar cozido, senão..."
E, assim, a rotina voltou aquela casa, antes dos quarenta e cinco.

Negócio entre meninos

Muitas pessoas tem, desde a idade mais precoce, um espírito empreendedor.
Alguns se tornam grandes empresários, enquanto outros apenas colecionam boas histórias.
Eu, por enquanto, estou no segundo grupo.
Mas, sempre fui muito criativo e arrojado, no momento de colocar em prática, as várias esquisitices que eu já bolei.
Em um desses primeiros (e mais marcantes) momentos de empreendedorismo infantil, quase me tornei um grande negociante de peixinhos ornamentais.
Tudo nasceu de uma necessidade premente.
O meu pai, cansado de não encontrar nenhum vasilhame vazio de cerveja, no depósito de garrafas, que era o quintal da minha casa, deu um ultimato: "não aceitaria mais a história de filho nenhum, ficar trocando as garrafas vazias (que no interior eram chamadas de 'cascos'), por picolés, na sorveteria do Rubão".
Aqui vale uma explicação: na década de 70, praticamente não existiam vasilhames descartáveis de bebidas, em geral. A maioria era envasada em garrafas, de vidro, retornáveis, ou seja, só se comprava cerveja ou refrigerante, levando a garrafa vazia até supermercado.
Como elas eram retornáveis, tinham um certo valor, por isso as sorveterias e os picolezeiros (aqueles que passam nas ruas empurrando um carrinho e apertando aquela sinetinha que chama a atenção de toda criança), estimulavam a garotada a trocá-las por picolés.
Como nunca tive uma mesada, só conseguia um sorvetinho extra, subtraindo alguma garrafa vazia do estoque do meu pai.
Bom, mas deixe-me voltar aos fatos.
Como já disse, eu tinha em mãos um grave problema: necessitava dos bons picolés cremosos da sorveteria da esquina e estava totalmente descapitalizado.
A solução seria tentar conseguir algum dinheiro, através do fruto do meu trabalho.
Depois de muito quebrar a cabeça, juntamente com um amiguinho da mesma idade (de uns dez anos), que passava pela mesma dificuldade, de fluxo de capital, tive uma idéia sensacional: vender peixinhos ornamentais (aqueles de aquário).
Lembramos que, no córrego onde sempre nadávamos (escondidos dos nossos pais, é claro), havia muitos peixinhos coloridos.
Nunca foi dada muita importância para eles, pois existiam aos milhares naqueles brejos.
Com uma peneira grande, de limpar café, fomos até lá e conseguimos coletar algumas dezenas.
No quintal da casa desse meu amigo, existiam dois tambores, que eram usados para armazenar água para alguma emergência (era comum a falta d'água, naquela época) e nos serviram de depósito provisório do nosso novo investimento.
Tudo bem escondido dos nossos pais, é óbvio, que sequer podiam sonhar que estávamos fazendo aquilo.
Negócio montado, faltava a parte mais importante: um comprador.
Se dependêssemos dos nossos vizinhos/amigos, estaríamos "fritos", pois nenhum deles recebia mesada e todos conheciam o nosso fornecedor de matéria-prima: o córrego.
Então, lembramos de um menino que morava na rua de cima, debilitado por uma hemofilia, sempre muito protegido pelos abastados pais, que gostava muito da nossa turminha, mas que não podia sair muito de casa (a sua mãe tinha certas restrições ao convívio com garotos mais agitados).
Conversamos com ele e, com um alto poder de persuasão, convencemos que seria muito vantajoso comprar o nosso produto, já que vendíamos peixinhos selvagens (pode isso), por um preço infinitamente inferior às lojas que existiam na cidade.
O pai do garotinho, convencido pelo próprio filho, montou aquário completo, com bombinha de ar, pedrinhas coloridas, tubarãozinho de enfeite, sereia, três tipos diferentes de algas e ração da melhor qualidade.
Nos comprou o estoque inteiro de peixinhos.
Pagou à vista e em dinheiro (não aceitávamos cartão de crédito, nem cheque pré-datado).
Pegamos todo o dinheiro e gastamos em sorvetes, picolés, bala de goma e tudo o que de melhor existia, feito a partir do açúcar, naquelas paragens.
Em um gesto de solidariedade, distribuímos a todos na nossa rua.
Mas, como nem tudo é perfeito, tivemos uma péssima notícia, alguns dias depois.
Não sei, se os peixinhos não se adaptaram bem à sua nova vida ou se foram tratados de maneira inadequada (talvez a ração tinha excesso de elementos proteícos, sei lá), mas pouco tempo depois, morreram todos. Isso mesmo, ocorreu um peixicídio no aquário do menininho hemofílico.
Depois de socorrer o filho, que teve um pequeno surto de nervosismo e frustração, o pai dele nos procurou para reaver o seu mau investimento.
Como não sabíamos que era necessária uma garantia para tal venda e já não tínhamos mais nada do que nos foi pago, percebemos a grande enrascada que acabávamos de nos meter.
Após uma ameaça aberta de contar tudo aos nossos pais, conseguimos um prazo de dois dias para repor o dinheiro investido pelo nosso primeiro cliente (engraçado, ele não aceitou novos peixinhos).
A solução encontrada (a minha segunda "grande ideia") foi conseguir a grana que devíamos, engraxando sapatos.
Peguei o material de engraxar que era do meu pai, o meu sócio fez uma caixinha improvisada com as sobras de um caixote de feira e fomos para um bar do nosso bairro, com alta concentração de possíveis clientes.
Só que existia um pequeno complicador nesse engenhoso plano: o ponto já tinha dono...
Um garoto de aproximadamente dezesseis anos, muito problemático (tinha um certo desvio de cárater) e muito forte, era o engraxate oficial daquele bar.
O seu nome verdadeiro eu nunca descobri, mas o povo o chamava de "Marcha Lenta" (devido aos seus pequenos problemas psiquiátricos).
Nem precisa escrever que nenhum outro profissional do ramo de polir sapatos, se metia a desafiá-lo.
Sabedores do seu alto grau de agressividade, esperamos ele se ausentar do local, para almoçar, e fomos tentar engraxar alguns sapatos e botinas.
Mas, a nossa esperteza de garotos de dez anos, sequer passava perto da dele que, desconfiado da nossa movimentação, escondeu-se para pegar-nos no momento em que começávamos a engraxar os sapatos do nosso primeiro cliente.
O meu amigo ao ver aquele ogro se aproximando, escafedeu-se, rapidamente.
Eu não podia sair correndo, pois o material que usávamos naquela empreitada, pertencia todo ao meu pai.
Ao tentar guardar tudo, acabei sendo pego pelo nosso desleal concorrente.
Resultado: escapei de uma surra, graças à intervenção dos bebuns daquele boteco, mas levei outra, bem dada, pelo meu pai, ao saber do ocorrido (ele teve, inclusive, que ressarcir o pai do menininho que nos comprou os peixinhos).
Sem falar que fiquei quase um ano sem poder passar perto daquele bar, que tinha os melhores Pastéis de Santa Clara da cidade...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Carga e descarga

A menininha era precoce, de fato.
Aos dois anos de idade já falava de tudo, com todos, conhecidos e estranhos.
Falava até com quem não podia lhe responder, como as suas bonecas e os animais da casa (o gato odiava ser incomodado por aquela tagarelice, via-se pela carinha do bichinho).
Certa vez ao passar pela sala, enquanto os adultos viam uma película americana ("Kramer versus Kramer"), ficou surpresa com o fato do menininho do filme, em tão tenra idade, falar tão bem o inglês, enquanto o seu irmão bem mais velho tinha uma imensa dificuldade em contar até dez, na língua de Shakespeare.
Era precoce também, nas suas observações.
Na mesma velocidade, que começou a falar, aprendeu a ler.
Fez isso, antes mesmo de entrar para o colégio.
Apenas observando atentamente o contar de histórias da sua mãe, sempre segurando o livrinho de letras grandes, e sendo uma aluna esperta na brincadeira de "escolinha" das irmãs mais velhas.
Claro, que lia juntando palavrinhas, sílabas, de maneira ainda imprecisa, mas com grande compreensão de pequenas frases, como em um "Caminho Suave", sem a cartilha.
Era uma diversão ao passear na velha Variant azul do seu pai, pelo centro da cidade, com dezenas de cartazes e placas de fácil e rápida leitura.
Lia tudo em voz alta, o tempo todo.
Até que, em uma esquina que, por conta de um semáforo mais demorado, o carro teve que fazer um parada maior e ela surpreendeu a todos, com uma pergunta, após a leitura de uma placa de sinalização:
- Papai, é aqui que a gente também carga e dá descarga?

Fé demais

Essa me foi contada por um amigo lá de Belo Jardim, o bom pernambucano: Vicente.
Como bom nordestino, sempre teve na sua família pessoas um pouco mais religiosas do que o costume.
Havia devoção de sobra para São Francisco, Padre Cícero, Frei Damião (tinha gente lá no agreste, que me achava parecido com ele, só de sacanagem, é claro) e outros tantos beatos e santos.
Mas, um deles se destacava, pelas suas crenças e fé.
Era o seu tio Januário.
Esse sim, era um caboclo de respeito.
Virtuosíssimo ao extremo, defensor da moral e dos bons (e tradicionais) costumes, ligados a fé católica, é claro.
Além de frequentador assíduo da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, de todas as novenas e trezenas realizadas nas casas dos paroquianos, também adorava as benzições tão comuns no interior do nosso país.
Benzia-se tudo, quebranto, mau olhado, espinhela caída, papeira (a nossa caxumba), bronquite, cobreiro e até alguns animais domésticos que adoeciam.
Como todos sabemos que, com o aumento da idade, a tendência é o crescimento da nossa fé, com tio Januário, não poderia ser diferente.
Na medida em que os anos iam passando em progressão aritmética, as suas crenças aumentavem em progressão geométrica.
Depois dos sessenta, acreditava, inclusive, que ele era um homem santo!
Isso mesmo, fazia crer que a sua conduta ilibada, as suas orações diárias (matinais, vespertinas e noturnas, por sinal) e o seu passado incólume de erros, era o tripé necessário para uma beatificação futura.
Sonhava, inclusive, com os milagres pós-mortem que ele operaria.
Lógico que a família era totalmente cética em relação a tudo isso e não apoiava em nada as esquisitices do sexagenário parente.
Quando a situação começou a deixar de ser apenas cômica, as filhas e as netas começaram a cobrar do tio Januário uma menor exposição da família junto a pequena comunidade, frente a tantas excentricidades.
Isso mexeu muito com o fervoroso devoto de Padre Cícero.
"Como assim? Por que tanta descrença e inveja?"
Haveria de se produzir uma prova da elevada espiritualidade dele!
Ele teria que mostrar a todos aqueles fariseus, que a sua fé era capaz de superar qualquer obstáculo e que aqueles que duvidavam da sua santidade, haveriam de se envergonhar de tanta descrença.
Avisou a família que iria iniciar dentro do seu pequeno quarto, uma vigília de sete dias e sete noites, passando somente a pão e água, além de muitas orações também.
E, depois desse período sabático, provaria a todos a sua santificação.
A família ficou muito preocupada, mas aceitou a resolução do seu patriarca.
Uma semana se passou e tio Januário saiu do quarto com a mesma seriedade que entrara.
Reuniram-se os familiares e vizinhos ao seu redor e aquela figura esquálida deu a sua sentença: "que todos presentes estavam abençoados e deveriam se redimir dos seus pecados."
"Que sem fé a humanidade se perderia..."
"E que, para provar a sua elevação espiritual, iria se abraçar no pé de mandacaru que tinha nos fundos da sua casa."
O povo ficou em polvorosa.
Será que a pacata Belo Jardim, haveria de ter mesmo, um santo? Será que Deus perdoaria tanta descrença e zombaria com aquela honrada figura?
E o cortejo foi formado, da sala da casa de tio Januário até o quintal da mesma.
Tio Januário proferiu meia dúzia de palavras (o povo podia jurar que ele tinha falado em latim) e saiu correndo em direção ao imenso cacto que já existia há mais de uma dezena de anos.
O povo de maneira fleumática, apenas soltou um "oh", coletivo, e viu o ancião se abraçar ao Mandacaru, com toda a força que ainda lhe restava.
Não deu tempo nem de se ouvir um segundo oh, das pessoas presentes, pois o que cobriu qualquer som foi o grito agudo e estridente de tio Januário.
O desespero dos genros em tirá-lo de lá, foi substituído pelo desespero das filhas em tentar retirar os espinhos de cacto, do seu corpo.
Mas, depois de três dias de internação na Santa Casa de Caruaru, ele sobreviveu.
Bom, se Belo Jardim perdeu um santo, pelo menos acabara de ganhar uma lenda...

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A missa

Cidade pequena, fé muito grande.
Não sei o porquê das mães da geração da minha mãe, acharem que colocando os filhos mais agitados, dentro das práticas religiosas, desde a mais tenra idade, iria provocar alguma mudança no comportamento daquelas "pestes".
A minha, imaginava, de verdade, que o padre daria um jeito (sem maldades, por favor) ou então acreditava mesmo em milagres.
Fui, por esse motivo, criança assídua nas cerimônias de coroação de Nossa Senhora, solista do coral mirim, catequisado (parece coisa de índio), auxiliar do leiloeiro nas quermesses, entregador de correio elegante e, pasmem, ajudante do pároco nas celebrações religiosas. Isso mesmo, me transformaram em coroinha!
Acho que, de todas as molecagens que são obrigatórias a um coroinha, eu devo ter me encaixado em pelo menos noventa por cento delas.
Desde tomar vinho escondido (aquele bem docinho que o padre usa na celebração), até mesmo comer parte das hóstias que chegavam ensacadas da padaria.
Aqui vale uma pequena pausa...
Isso sim é o máximo da molecagem, pois quem já se comungou, sabe que a hóstia não tem gosto de nada e, ainda por cima, se não tomarmos cuidado, ela ainda gruda no céu da boca (é um sacrifício tentar tirá-la com a língua, de lá, basta ver as expressões das pessoas após a comunhão...).
Por falar nisso, a última vez que eu fiz o meu pequeno banquete, regado a sobras de vinho de São Roque (aquele restinho que o padre mandava devolver no garrafão, após a homilia) e hóstias recém-chegadas da padoca, fui pego pelo Frei Davi, justamente o mais rígido de todos eles.
Ele era um alemaozão de quase dois metros de altura, cara vermelha e muito brava, mais radical que o Ives Gandra Martins, em assuntos religiosos (aquele da Opus Dei) e sem um pingo de compaixão por atitudes "impensadas" como a minha.
Ele me pegou pela orelha e após combinar com a minha mãe, um pequeno teatrinho, disse que eu poderia ser excomungado, por tamanha heresia (é claro, que eu só aprendi o significado dessa palavra, concomitantemente ao tempo que perdi o medo dela).
Eu tinha acabado de colocar em perigo a minha tão sonhada vaga no paraíso, no céu, que, inclusive, ainda quero, mas não agora.
Ninguém pode imaginar o quanto isso mexeu com a cabeça pura e livre de maldades, de um garotinho de dez anos.
Se durasse mais de uma semana, essa pequena farsa combinada entre o pároco e a minha mãe, eu acho que a igreja teria me consertado mesmo!
Fui a criança mais tranquila e obediente de toda a minha geração, naqueles sete dias.
Mas, acabada a ameaça do "fogo eterno", parece que eu tinha me esquecido de tudo o que prometi cumprir nos dias anteriores (sempre tive problemas com a minha "memória curta").
Pouco tempo depois, eu já estava de volta na doce missão de auxiliar nas cerimônias religiosas, subindo rapidamente de posto, de ajudante das missas só frequentadas por meia dúzia de beatas (aquelas de meio de semana, onde o padre nem as reza por inteiro, só faz uma leitura e um pequeno sermão), para o sonho de todo coroinha: a missa das sete da noite, do domingo.
Só para vocês terem uma ideia, a missa noturna dominical do Santuário de São Judas Tadeu, não só atraía quase toda a cidade, como também muitos moradores da área rural do nosso município.
Eles vinham assistir a "mais bela e introspectiva celebração de toda a região". Público grande e bem selecionado, inclusive com a presença da minha orgulhosa mãe, que tinha um filho com participação ativa na cerimônia.
Eu era o membro intermediário do trio de coroinhas.
Impecavelmente apresentado, bem penteado, com o cabelinho de lado e com muito gel (lembram do Gumex), entre um garoto dois anos mais velho (e maior) e outro um ano mais novo (e bem menor).
A parte alta da missa, para nós coroinhas, era tocar a sinetinha na hora da consagração do pão e do vinho.
Três garotos. Três vezes que se tocava a sinetinha.
Tudo perfeito.
Até um domingo, em que estava entre nós (por sinal, do meu lado esquerdo) um desses garotos de má índole, que já deveria estar deixando o ofício de ajudante de missas, por conta da idade e tamanho, sem o virtuosismo que era típico da minha pequena pessoa e tramou algo inimaginável para aquele santo momento.
Após tocar pela primeira vez o sininho, ao invés de me passar o tão desejado objeto de percursão, ele a mudou de mão o tocou novamente (isso mesmo, pela SEGUNDA vez).
Eu e o outro pequeninho, frente a tal ato de traição, não pensamos duas vezes (ou melhor, nem pensamos), partimos para cima daquele Judas, daquele publicano.
Pois é, uma igreja lotada assistiu de maneira perplexa (nem tanto quanto a expressão do Frei Davi), um combate sangrento entre os três coroinhas, pela sinetinha.
Após a separação da contenda, fomos gentilmente conduzidos pelas nossas orelhas, até a sacristia e só não fui excomungado pela segunda vez (de mentirinha, é lógico), porque eu nunca mais voltei àquela paróquia.
E nem a minha mãe, é claro...

Pé de pato, bangalô, três vezes...

Dona Elvira era extremamente supersticiosa.
Pé de coelho, trevo de quatro folhas, olhinho grego, mãozinha com figa, entre outras coisas, sempre eram companhias confiáveis.
Ouvir um piado de coruja no telhado ou sonhar que estava arrancando dentes, então, nem pensar, já lhe causava arrepios, pois era, com certeza, a premonição de morte de uma pessoa próxima.
E, justamente o que mais lhe impressionava, aconteceu naquela noite de doze de agosto, véspera de uma sexta-feira.
Acordou com um "pesadelo horrível": ela estava no dentista extraindo o canino.
E logo após ouviu uma suindara que passeava pelas vizinhanças, piar bem sobre a janela do seu quarto.
Ao amanhecer, preveniu a todos na casa, impedindo os netos de ir a escola, os filhos de pegar lotação para chegar ao trabalho (o Antenor gastou o que não tinha para ir de Itaquera a Lapa, de táxi) e até a cadelinha de estimação não foi fazer o seu costumeiro passeio matinal.
Só não se sentiu cem por cento segura, pois lembrou-se do irmão caçula que estava nos Estados Unidos, trabalhando clandestinamente no perigoso ofício de pintura de estruturas metálicas de pontes, na Califórnia.
Tentou contato o dia inteiro para alertá-lo dos "riscos" que ele corria, mas não conseguia sequer um sinal do celular.
A sua aflição aumentou, as orações intensificaram-se e o final da sexta-feira, treze, se aproximou.
De tão cansada, adormeceu levemente na poltrona do seu quarto, ao lado da extensão telefônica.
Acordou, subitamente, próximo da meia noite, com o toque estridente do telefone, com o seu volume maior que o habitual (que ela mesma tinha feito questão de aumentar), coração palpitante e mão formigando.
Mas, a sua nora que estava na sala e, também muito aflita, atende rapidamente, pois não queria que a sogra se assustasse, ouve aliviada a voz vinda dos Estados Unidos, do querido irmão de Dona Elvira desculpando-se pelas chamadas não atendidas, devido a diferença de fuso horário e, tranquilizando a todos, disse que estava bem e que passava pelo melhor momento da sua vida, já que tinha conseguido o "green card" e não era mais um imigrante ilegal.
A moça sobe rapidamente as escadas, vai até o quarto da sogra, para mostrar a grande bobagem de acreditar em superstições tolas (já que ela não perdera nenhum parente próximo) e antes de dar a "boa nova" , ela encontra Dona Elvira morta, estatelada na poltrona, provavelmente vítima de um fulminate ataque cardíaco...

O preservativo

Morar em uma metrópole como São Paulo tem consequências positivas e negativas.
Afora poluição, trânsito caótico, insegurança e excesso de corintianos, sobram muitas coisas boas. O lazer é uma delas.
A cabeça mais aberta do paulistano é outra.
E olha que eu não estou falando daqueles descoladinhos que transam tudo e todos (se é que vocês me entendem...).
Eu estou dizendo é que em uma cidade grande, parece que as pessoas conseguem ser mais esclarecidas, ter menos tabus e mitos do que a população de cidades muito menores.
Tudo bem que, ainda existem em um número razoável, aqueles que ainda persistem no rigor de uma moral pré-século XIX.
Como também no meu reduto de bons caipiras (eita, interiorzão), há aqueles que já não deixam nada a desejar a toda onda de "modismos pós-contemporâneos" (olha a Globo aí, gente...).
Se hoje, quase no início do século XXI é assim, imagine há vinte e poucos anos atrás.
Falar abertamente sobre sexo, doenças venéreas e prevenção, na maioria das famílias da minha cidade, nem pensar (apesar da insistência da TV em discuti-las).
A professora de ciências, na minha escola, era a nossa única referência sobre o assunto (e que referência, que professora...).
Quando iniciei a minha vida sexual, fiz de maneira quase clandestina, sem muita informação.
Mas, depois de grandes campanhas para evitar o crescimento da AIDS, reforçadas pelas tristes mortes de algumas celebridades, abateu-se sobre o município a preocupação com essa doença que já "deixava de ser apenas de drogados e homossexuais" (quanta ignorância a nossa...).
A partir daí, passou a ser comum, mesmo lá no interiorzão, a distribuição de preservativos e informações por diversas entidades, algo natural, hoje em dia.
Antes disso, bem antes, por sinal, o meu primeiro contato com a famosa "camisa de vênus" foi por imposição de uma pseudo-namorada que, conscientemente, tinha medo de engravidar-se e exigiu na nossa primeira relação, que eu me apresentasse devidamente prevenido.
Vocês não tem ideia o que é chegar em uma farmácia bem pequena, de uma cidade menor ainda, em plena década de oitenta para comprar um preservativo.
E olha que eu procurei um estabelecimento bem distante do meu bairro (sim, cidades pequenas também se dividem em bairros, mesmo a maioria deles tendo apenas cinco ou seis ruas).
Cheguei já no final da tarde e a única pessoa que estava ali, no balcão era uma jovem senhora, com jeito de beata.
Imaginem!
Eu já tinha atravessado a cidade toda (umas dez ruas) para comprar a minha garantia de "sexo seguro" em um local onde eu não pudesse ser reconhecido, próximo ao horário de baixar as portas (naquela época, quem precisasse de remédio à noite, era só bater na porta do farmacêutico que morava nos fundos da sua farmácia) e dei um tremendo azar ao ser atendido por uma... MULHER!
Óbvio, que eu não pedi o que queria (e como queria).
Disse que precisava de um analgésico para a minha dor de cabeça (de fato ia começar a doer mesmo...).
Fui prontamente atendido.
Enrolei mais um pouco, pois há sempre a esperança de aparecer um outro funcionário (repito, funcionáriO) e ao perceber que ela já começava a se inquietar pela maneira como eu corria os olhos pelas prateleiras, de maneira ainda indecisa, acabei pedindo um envelope de Alka-seltzer (alguém ainda se lembra?).
Mais alguns minutos depois e percebendo que ela olhava insistentemente para o relógio, a fim de fechar logo a botica, acabei me dirigindo para o caixa para pagar as minhas duas compras e sem levar o que eu tinha ido buscar, com a cara mais desanimada do mundo.
Mas, infelizmente, a minha grande vergonha (para isso, é claro) me impedia de pedir o preservativo.
A própria atendente pegou a nota que dei e, ao procurar o troco, percebeu que não haviam moedas para me devolver.
Então, ela abriu um sorriso amarelado e me disse:
- "Eu não tenho troco. Você não se importa em levar uma camisinha..."

Vivendo e aprendendo

Jurandir que nuca teve muitas aptidões manuais, nunca foi bom para aqueles pequenos serviços domésticos que cabem ao "homem da casa", como consertar objetos quebrados, fazer alguma coisa de carpintaria, dar um jeito nos canais da tv, na antena, etc, etc...
Mas, se surpreende com Maria Eugênia que, de uma hora para outra, começa, ela mesma, a executar esses pequenos consertos.
Chega no seu doce lar e vê o ferro elétrico esquentando novamente, aquele bocal de lâmpada problemático já acendendo normalmente, o fogão já não apresentava nenhuma boca entupida e até mesmo a maldita torneira do banheiro da suíte do casal, que pingava a noite inteira, completamente fechada.
Era praticamente uma boa surpresa por dia...
Que mulher maravilhosa!
Aprender tanta coisa naquela idade (já madura), em tão pouco espaço de tempo. E com tantos afazeres domésticos.
E o que é melhor, essa boa surpresa, justo no momento em que o casamento esfriou um pouquinho (quinze anos, sem filhos...).
Até que ela prometeu dar um jeito no chuveiro, que já não aquecia como antes.
Jurandir muito preocupado, já que a peça era ligada em duzentos e vinte volts, volta para o apartamento mais cedo, a fim de evitar algum choque e, quem sabe, poder aprender um pouco também.
Mas, para a sua surpresa, encontra Maria Eugênia de camisola ao lado do zelador, semi-nu, com a chave inglesa na mão e o chuveiro desmontado.
Quase aconteceu uma tragédia, que só não ocorreu, devido ao porte avantajado do prestativo funcionário do condomínio (e também pela sua fama de mau elemento).
O pobre Jurandir acabou perdoando Maria Eugênia e para fugir das más línguas dos vizinhos, mudou-se para uma distante cidade do interior do estado.
Parece que foi muito bom, pois Maria Eugênia que mal sabia fritar um ovo, passou a recebê-lo todos os finais de tarde, com um pão bem quentinho, "feito por ela mesma", em casa...

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Alegoria de um agricultor amador

Eu gosto muito de alegorias.
Influência de Platão, principalmente da "Alegoria da caverna", onde um dos indivíduos vence os seus medos e sai da caverna, descobrindo a luz de um novo mundo mais interessante, mais estimulante e com novas possibilidades.
Mas, por enquanto, isso não vem ao caso...
O que eu quero me atrever a contar é que a minha relação com a natureza é muito grande.
Devido a isso, num passado mais distante, cheguei até mesmo a me sentir um pouco envergonhado pela aspereza das minhas mãos, já que em todos os finais de semana eu ia para a chácara dos meus pais e mexia diretamente com a terra, pegava na enxada, arrancava muito mato com as mãos, roçava...
Hoje, contra a minha vontade (pela falta de tempo), não tenho ido mais para lá (me dá saudade), mas mesmo assim, ainda restam alguns poucos calos, resultado daquele trabalho. Também não tenho mais vergonha que me toquem a palma da mão. Pelo contrário, até me orgulho disso.
Adorava trabalhar na horta, enquanto a preferência da minha mãe era pelo jardim e a do meu pai era pelo pomar.
Quem via de fora, achava bem interessante aquilo: a horta era a minha "menina dos olhos", o pomar era o orgulho do meu pai e o jardim, o "xodó" da minha mãe.
Nesses dias que estou bem longe deles, fiquei pensando muito naquilo que fazíamos e no que nos dedicávamos. Acho até que nesses últimos finais de semana, estou sentindo um pouco de BANZO (um mal que acometia os escravos, à noite, nas senzalas, com saudade da África).
Por isso, pensei nessa alegoria.
O porquê das atividades e das preferências de nós três: a horta, o pomar e o jardim, coisas bem distintas para quem conhece o trabalho da roça.
Ao trabalhar na horta, eu tinha uma grande preocupação em levantar bem o canteiro para evitar que a água retirasse parte do solo, muitas vezes colocava telhas e tijolos na sua lateral, para deixá-lo mais firme e, sempre antes de plantá-lo, afofava-o com a enxada e colocava muito, muito esterco. Depois de regá-lo bastante, o cobria com folhas de palmeira, para manter a terra úmida e evitar um mal comum na nossa região (a laterização). Fazia, então, o plantio, geralmente com mudinhas que eu já tinha semeado anteriormente em uma bandeja com um composto fértil, sendo escolhidas somente aquelas que eu achava ser as mais resistentes e vistosas.
Com o passar do tempo nasciam muitas ervas daninhas, ao lado das plantinhas, no canteiro. Então era o momento de me acocorar e, com as mãos, arrancava uma a uma essas invasoras que poderiam consumir parte dos nutrientes fundamentais para o bom desenvolvimento das "minhas mudinhas", impedindo-as de crescerem fortes e bonitas. Quando necessário também fazia uma proteção com paus para evitar a visita de pássaros, ou então, uma calda com fumo, que jogava sobre elas para coibir o ataque de insetos e pulgões.
Ao associar essa minha preferência pela horta com a minha vida, consegui perceber que eu tinha uma grande facilidade em cultivar novas amizades, principalmente nos meus locais de convivência diária, como no meu local de trabalho e nas minhas viagens. Eu preparava bem o terreno, "escolhia" as pessoas que tinha mais afinidade e retirava da minha convivência algumas "ervas daninhas", espantando também outros males que poderiam danificar aquelas amizades que eu cuidava com tanto carinho.
Mas, era na realidade, a mesma coisa que a minha horta, já que essas amizades duravam o tempo que nós convivíamos na escola ou nos outros lugares, já que o ciclo de vida das hortaliças também é muito curto, resultando sempre na renovação dos canteiros.
Percebi que, quando deixava de conviver diariamente com essas pessoas (o mesmo cuidado diário que a horticultura exige), a nossa amizade esfriava e, com o tempo, se acabava.
Procurei, então, entender o porquê de meu pai preferir o pomar, já que ele sempre dizia que o que estava plantado ali, durava vários anos (algumas árvores duram mais "que uma vida", existindo por duas, três ou mais gerações) e, mesmo quando estamos distantes, elas são tão sólidas e resistentes, que conseguem sobreviver sem os cuidados diários que uma horta exige. Resistem à secas muito prolongadas e até mesmo a grandes intempéries ou tempestades. Lembro-me de um abacateiro, cultivado há muito tempo que, numa tempestade de verão, foi atingido por um raio e quebrou-se ao meio, pegando fogo também. Eu queria cortá-lo, para plantar um novo abacateiro, mas o meu pai disse que ele era tão resistente, que novamente brotaria com mais força ainda.
É impressionante como eu olho para aquela árvore, que para mim tinha morrido e, hoje, apresenta-se vigorosa, frutificada, com os galhos novos saindo da antiga estrutura danificada. Como algumas amizades, que deveriam resistir a tudo.
Na minha horta, as frágeis plantinhas (entenda como as minhas "frágeis amizades"), não resistiriam sequer a uma ventania, quanto mais a uma tempestade. O abacateiro do meu pai renasceu, como algumas amizades sólidas que passam por intempéries e ressurgem, ainda mais fortalecidas.
A partir de então, continuo cultivando a "minha horta", mas tenho tentado plantar alguns abacateiros, no pomar das minhas relações. Espero que eu tenha a competência do meu pai, para fazê-los fortes e resistentes e, mesmo distantes, possam manter-se vivos e bem frutificados.
Procure entender que eu sou mais um HORTICULTOR do que um FRUTICULTOR. Mas, vou tentar fazer florescer os "meus abacateiros", pois só assim terei certeza que eles ficarão resistentes a muitas tempestades ou a uma grande distância, já que as suas raízes longas conseguem buscar água em grandes profundidades, não necessitando de se regar diariamente.
Quanto ao jardim, muito bem cultivado pela minha mãe, me vejo presente nele, cuidado por mãos delicadas e muito rígidas, que me ensinaram valores e sensibilidade, fazendo florescer várias espécies diferentes e exóticas, que enfeitam a parte mais importante da nossa casa: a sua entrada.
Um filho será sempre a principal e a melhor apresentação da sua mãe, da sua criação...