quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A missa

Cidade pequena, fé muito grande.
Não sei o porquê das mães da geração da minha mãe, acharem que colocando os filhos mais agitados, dentro das práticas religiosas, desde a mais tenra idade, iria provocar alguma mudança no comportamento daquelas "pestes".
A minha, imaginava, de verdade, que o padre daria um jeito (sem maldades, por favor) ou então acreditava mesmo em milagres.
Fui, por esse motivo, criança assídua nas cerimônias de coroação de Nossa Senhora, solista do coral mirim, catequisado (parece coisa de índio), auxiliar do leiloeiro nas quermesses, entregador de correio elegante e, pasmem, ajudante do pároco nas celebrações religiosas. Isso mesmo, me transformaram em coroinha!
Acho que, de todas as molecagens que são obrigatórias a um coroinha, eu devo ter me encaixado em pelo menos noventa por cento delas.
Desde tomar vinho escondido (aquele bem docinho que o padre usa na celebração), até mesmo comer parte das hóstias que chegavam ensacadas da padaria.
Aqui vale uma pequena pausa...
Isso sim é o máximo da molecagem, pois quem já se comungou, sabe que a hóstia não tem gosto de nada e, ainda por cima, se não tomarmos cuidado, ela ainda gruda no céu da boca (é um sacrifício tentar tirá-la com a língua, de lá, basta ver as expressões das pessoas após a comunhão...).
Por falar nisso, a última vez que eu fiz o meu pequeno banquete, regado a sobras de vinho de São Roque (aquele restinho que o padre mandava devolver no garrafão, após a homilia) e hóstias recém-chegadas da padoca, fui pego pelo Frei Davi, justamente o mais rígido de todos eles.
Ele era um alemaozão de quase dois metros de altura, cara vermelha e muito brava, mais radical que o Ives Gandra Martins, em assuntos religiosos (aquele da Opus Dei) e sem um pingo de compaixão por atitudes "impensadas" como a minha.
Ele me pegou pela orelha e após combinar com a minha mãe, um pequeno teatrinho, disse que eu poderia ser excomungado, por tamanha heresia (é claro, que eu só aprendi o significado dessa palavra, concomitantemente ao tempo que perdi o medo dela).
Eu tinha acabado de colocar em perigo a minha tão sonhada vaga no paraíso, no céu, que, inclusive, ainda quero, mas não agora.
Ninguém pode imaginar o quanto isso mexeu com a cabeça pura e livre de maldades, de um garotinho de dez anos.
Se durasse mais de uma semana, essa pequena farsa combinada entre o pároco e a minha mãe, eu acho que a igreja teria me consertado mesmo!
Fui a criança mais tranquila e obediente de toda a minha geração, naqueles sete dias.
Mas, acabada a ameaça do "fogo eterno", parece que eu tinha me esquecido de tudo o que prometi cumprir nos dias anteriores (sempre tive problemas com a minha "memória curta").
Pouco tempo depois, eu já estava de volta na doce missão de auxiliar nas cerimônias religiosas, subindo rapidamente de posto, de ajudante das missas só frequentadas por meia dúzia de beatas (aquelas de meio de semana, onde o padre nem as reza por inteiro, só faz uma leitura e um pequeno sermão), para o sonho de todo coroinha: a missa das sete da noite, do domingo.
Só para vocês terem uma ideia, a missa noturna dominical do Santuário de São Judas Tadeu, não só atraía quase toda a cidade, como também muitos moradores da área rural do nosso município.
Eles vinham assistir a "mais bela e introspectiva celebração de toda a região". Público grande e bem selecionado, inclusive com a presença da minha orgulhosa mãe, que tinha um filho com participação ativa na cerimônia.
Eu era o membro intermediário do trio de coroinhas.
Impecavelmente apresentado, bem penteado, com o cabelinho de lado e com muito gel (lembram do Gumex), entre um garoto dois anos mais velho (e maior) e outro um ano mais novo (e bem menor).
A parte alta da missa, para nós coroinhas, era tocar a sinetinha na hora da consagração do pão e do vinho.
Três garotos. Três vezes que se tocava a sinetinha.
Tudo perfeito.
Até um domingo, em que estava entre nós (por sinal, do meu lado esquerdo) um desses garotos de má índole, que já deveria estar deixando o ofício de ajudante de missas, por conta da idade e tamanho, sem o virtuosismo que era típico da minha pequena pessoa e tramou algo inimaginável para aquele santo momento.
Após tocar pela primeira vez o sininho, ao invés de me passar o tão desejado objeto de percursão, ele a mudou de mão o tocou novamente (isso mesmo, pela SEGUNDA vez).
Eu e o outro pequeninho, frente a tal ato de traição, não pensamos duas vezes (ou melhor, nem pensamos), partimos para cima daquele Judas, daquele publicano.
Pois é, uma igreja lotada assistiu de maneira perplexa (nem tanto quanto a expressão do Frei Davi), um combate sangrento entre os três coroinhas, pela sinetinha.
Após a separação da contenda, fomos gentilmente conduzidos pelas nossas orelhas, até a sacristia e só não fui excomungado pela segunda vez (de mentirinha, é lógico), porque eu nunca mais voltei àquela paróquia.
E nem a minha mãe, é claro...

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