domingo, 29 de agosto de 2010

Circo

Desde pequeno, eu sempre fiquei impressionado com os espetáculos circenses.
Na minha cidade, apareciam desde aqueles famosos, com nomes pomposos e dezenas de atrações internacionais (com nomes pomposos, também) até mesmo os mais chinfrins, com lonas costuradas e artistas que se revezavam em vários números e na assistência do palco (em alguns o pipoqueiro era o malabarista, o porteiro fazia um dos palhaços, a faxineira era assistente de palco e assim ia seguindo o espetáculo).
Um dos que eu mais lembro, nessa linha mambembe, de poucos recursos, era o Circo Aritana.
Não existia nada mais brasileiro e improvisado que o Circo Aritana...
Tinha meia dúzia de artistas, alguns funcionários entediados e equipamento apodrecendo e enferrujando.
Para se ter uma noção da qualidade do espetáculo, a principal atração eram as duplas caipiras que se apresentavam no final do mesmo (todas eram contratadas na região).
Mas, era interessante ver a gama de atrações desse circo.
Haviam três palhaços, que faziam as pessoas rirem mais por dó, do que por talento.
O mágico tinha uma assitente que mal cabia na mesa para ser serrada.
Trapézio, não havia, pois a lona e a estrutura do circo, não aguentariam muitas manobras.
O globo da morte tinha duas motos barulhentas que não conseguiam subir muito além da sua metade.
Haviam cinco malabaristas, que equilibravam tudo o que lhes passava pelas mãos (até algumas panelas de fundo escuro, típicas de fogão à lenha).
Apesar de tudo, vale um crédito positivo ao "Gran Circo Aritana", pois eles não possuíam números com animais.
O que era incomum naquela época, pois todas as companhias circenses famosas tinham um grande plantel de bichos adestrados e infelizes.
Como hoje, o circo moderno não conta mais com esses números, fiquei surpreso ao ver na televisão, uma denúncia de uma Ong que protege animais, contra uma pequena trupe que tinha alguns deles.
A repórter, indignada, entrevistava o dono do local, acompanhada dos representantes da associação que protegia a vida selvagem:
- "O senhor não acha um absurdo ter tantos animais em condições tão degradantes?"
E o dono do circo:
- Minha senhora, todos eles tem carinho, são bem alimentados e gostam de se apresentar..."
A jornalista insistia:
- "Mas têm animais que nem conseguem ser adestrados direito. O que faz essa grande quantidade de cabras, lá atrás. Que número elas conseguiriam fazer?"
E o senhor, sem pestanejar, deixa a mocinha atônita:
- "Ah, as cabras não se apresentam, não! Elas servem apenas para alimentar os leões!"
Pois é, fiquei pensando, os bichanos devem gostar de tomar um bom leitinho...

Gentileza infantil

A jovem mamãe saiu de casa muito cedo, naquele sábado, com muitos afazeres a cumprir fora de casa.
Tinha que ir ao supermercado, cabeleireiro, manicure, passar na casa da sogra, trocar uma roupa que o marido tinha lhe dado e passar no restaurante preferido a fim de comprar comida para o almoço.
Acordou o esposo e pediu que ficasse atento à filhinha do casal, dando-lhe mamadeira (tinha apenas três aninhos) e muita atenção, pois ela "adorava brincar com o papai".
Não deu muito tempo e a pequenininha acordou.
Após o leitinho com chocolate, ficou entretida com o seu joguinho de montar, enquanto o pai assistia o treino da Fórmula 1, pela televisão.
Nisso, ele percebe que ela sai e volta rapidamente com um copo com água pela metade, oferecendo-o ao "querido papai".
Ele fica surpreso com a desenvoltura da menininha e bebe a água com gosto, elogiando muito a atitude da filhinha.
O elogio parece que a animou mais ainda e ela repete o gesto mais vezes, até o papai cansado de beber, dizer que não tem mais sede.
Feliz, ele espera a mamãe chegar para contar tudo, com detalhes, da esperteza e da gentileza da sua pequenininha.
A mamãe com um sorriso de canto de boca, achando a situação bem diferente, pergunta ao marido, de maneira bem taxativa:
- "Você deve ter percebido que o único lugar, compatível com o seu tamanho, que ela consegue pegar a água, é no vaso sanitário, né?"

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Golpe

Espertalhões, velhacos, existem em qualquer lugar.
Golpes que lesam o patrimônio público e privado são comuns em quase todo o território nacional.
Em pleno século XXI, ainda há pessoas que caem no "conto do Vigário" ou no "golpe do bilhete premiado", que já existem desde a metade do século passado.
A ganância e a ignorância de parte da população são aliadas desses maquiavélicos usurpadores.
Um desses casos que não me saiu da memória, ocorreu em algumas cidades menores do interior do estado de São Paulo e vitimou alguns dirigentes de clubes até tradicionais do nosso querido esporte bretão.
Uma quadrilha de malandros passou a frequentar os jogos da segunda e terceira divisões do futebol paulista e observando os trejeitos e manias de alguns árbitros, antes de entrar em campo, bolou uma estratégia de ganhar algum dinheiro de pessoas não muito honestas.
Acontecia o seguinte: um determinado juiz ao entrar em campo, batia o pé direito três vezes antes de pisar no gramado e se benzia olhando para o céu. Isso era comum para ele. Sempre fazia isso, independente de onde apitaria o jogo.
Sabedores dessa mania, os aproveitadores ao lerem a escala de árbitros da Federação Paulista, procuravam com alguma antecedência algum diretor do time mandante do jogo que esse infeliz apitaria e propunham um esquema para facilitar a partida para o time da casa.
Diziam que o juiz já estava ciente da pilantragem e pediam o dinheiro antecipado para fechar o esquema, que daria a vitória ao time ajudado pelo "árbitro corrupto".
Muitas vezes, os dirigentes pediam uma garantia que provasse que o juiz tivesse aprovado a velhacaria.
Então eles colocavam, de maneira categórica:
- "Se ele bater o pé três vezes antes de pisar no gramado e se abençoar olhando para cima é porque topou o dinheiro que vocês ofereceram."
Volto a frisar, que o pobre coitado do árbitro SEMPRE fazia isso antes de entrar em campo e jamais sonhava com o que estava sendo tramado pelas suas costas.
Muitos clubes topavam e depois de ver o dito cujo fazer o seu ritual tradicional para entrar em campo, davam o dinheiro para os gatunos e esperavam um jogo fácil, por parte da arbitragem.
Não se passavam nem cinco minutos e os larápios se mandavam da cidade para nunca mais voltar.
Agora, se o pobre do árbitro dava sorte de apitar um jogo tranquilo, em que o time mandante vencia, não acontecia nada.
Mas, quando o time da casa perdia...
Teve juiz que chegou a sair do estádio até de camburão!

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Serão

Certa vez, ainda pequeno, fui levado para a empresa em que o meu pai trabalhava, para acompanhá-lo em algumas horas de "serão noturno" para recuperar um pouco do serviço atrasado.
Era uma usina de laticínios, bem conhecida na cidade, e ele trabalhava no escritório dela, cuidando de alguns papéis da contabilidade.
Ele me colocou em uma das mesas do fundo e ficou na dele, datilografando algumas saídas de produto.
Eu peguei uma folha de papel e comecei a desenhar, no alto dos meus oito anos.
Curioso, como qualquer criança, ao vê-lo distraído com as notas fiscais, comecei a mexer na mesa em que eu estava sentado. Peguei na gaveta outras canetas, um lápis borracha, algumas folhas de papel carbono e dois carimbos.
Num deles eu li o nome da pessoa que era a responsável pela mesa em que eu estava acomodado.
E, pasmem, tinha o nome da minha avó materna, que cuidava de mim durante parte dos dias e que, naquele dia, tinha me delatado para a minha mãe de uma travessura que eu tinha cometido, resultando em uma pequena dura.
Mordido com aquela situação, irado com a minha avó, eu não pensei duas vezes: peguei uma das folhas de papel e escrevi os maiores impraupérios que eu já conhecia, usando o nome dela como sujeito que, lembrando, era homônima à dona da escrivaninha em que eu estava.
Raiva destilada, já leve por ter podido colocar em palavras tudo o que eu sentia naquele momento, piquei em pedacinhos miúdos aquela folha de papel e atendi o chamado paterno para ir para casa.
Tudo perfeito, só que eu não tinha percebido um pequeno detalhe: a folha de papel que eu tinha utilizado era um dos carbonos que eu havia retirado da gaveta.
No outro dia, a xará da minha avó ao sentar-se na mesa, quase teve uma síncope ao ler vasto "conteúdo atentatório contra a sua pessoa".
Deu um piti homérico, um escândalo daqueles, que abalou a pacífica estrutura do local.
Os chefes foram chamados, os funcionários foram convocados e antes de qualquer investigação mais minuciosa (ela já tinha acusado uns dois ou três contínuos que não morriam de amores por ela), o meu pai ao se aproximar da mesa, sentenciou de maneira extremamente honesta:
- "Essa é a letra do meu filho, que eu trouxe comigo ontem à noite, depois do expediente!"
Nem precisava escrever que ele foi firmemente repreendido e quase demitido.
Além de muito envergonhado, o meu velho estava muito nervoso e, por sorte, foi parado pela minha mãe antes de me encontrar.
Após ouvir atentamente a história que foi contada para ela, percebi que eu levaria uma surra daquelas.
Casa pequena, eu no quarto sem ter como pular a janela, que estava trancada, ao ouvir o meu nome, não pensei duas vezes: fui correndo para o banheiro e me tranquei lá dentro.
O meu pai batia na porta e me ameaçava, dizendo que, se eu não a abrisse "o coro seria dobrado" (já dá para imaginar o que significa coro, no interior).
De jeito nenhum eu abriria aquela porta.
Aguentaria ali, sentadinho no trono, bebendo água da torneira e rezando, por pelo menos umas duas semanas...
Como ele viu que ameaças não me intimidariam, pegou uma chave reserva na gaveta, que guardava, pois tinha medo que a minha irmã pequena se trancasse no banheiro e não conseguisse sair e colocou na fechadura.
Após esse ato, o que transcorreu foi quase uma comédia de pastelão, pois ele girava a chave para abrir a porta, do lado de fora e eu, do lado de dentro girava no sentido contrário.
Como não daria em nada, caberia somente um acordo mútuo para por fim à aquele impasse.
Após quase duas horas de intransigência e mais calmo, ele me pediu para sair, pois só tínhamos um banheiro na casa e a minha irmãzinha queria usá-lo (de fato, eu percebi o choro dela, do lado de fora).
Para atendê-lo, eu fiz ele me garantir que não me bateria.
Como ele sempre foi um homem de palavra, abri na hora, quando ele assegurou que não me daria uma surra.
Naquela noite, eu apanhei da minha mãe...

Criação

É impressionante como somos um reflexo da nossa criação!
Desde pequeno, fui criado em uma casa de fundos, com pouca ventilação e visitada por alguns indesejáveis roedores.
Eu me divertia ao ver a minha mãe em pé, sobre uma cadeira, gritando para que o meu pai pudesse dar fim, geralmente com uma vassoura, em algum camundongo que insistia em compartilhar da nossa convivência.
Eu ficava de canto, fingindo valentia e torcendo muito para que o bichinho não viesse em minha direção.
Jamais eu poderia mostrar fraqueza, correndo ou subindo em uma cadeira, pois quem fazia isso era a minha mãe...
Mãe, inclusive, que trabalhava em dois períodos e ainda estudava à noite!
Mas, não pensem que ela era ausente, não.
Mesmo quando não estava em casa, nós sentíamos a sua presença.
Quando eu ainda era bebê, as poucas horas que ela passava em casa, no final de semana, era comigo ao seu lado.
Até hoje, ela me conta emocionada, que muitas vezes ficava comigo no seu colo e, ao mesmo tempo, estudava para o seu curso de pós-graduação, lendo em voz alta as suas anotações de aula.
Eu prestava muita atenção e balançava a cabeça afirmativamente, como se entendesse algo, pois imaginava que ela estava contando historinhas para mim.
A minha primeira surra também foi fruto de uma tentativa de mostrar-me independente para ela.
Antes dela ir para a escola, sempre pedia que eu me arrumasse para que pudesse ser levado para a casa da minha avó, onde eu ficava o dia todo, até que o meu pai passasse lá, no começo da noite para me levar de volta para casa.
Era uma rotina e um caminho que eu já conhecia.
Então, no alto dos meus quatro anos, resolvi após me arrumar, sair sozinho e ir desacompanhado até a casa da vovó (não ficou parecido com historinha da carochinha), que ficava distante uns cinco quarteirões da minha casa.
Ao me ver chegando sozinho na cozinha dela, a mãe da minha mãe achou que eu havia sido deixado no portão, como em alguns dias que ela se encontrava mais atrasada, por isso nem se preocupou em vê-la.
Já a minha mãe ao não me ver em casa, sentadinho esperando-a, como de costume, se desesperou.
Na década de setenta, não tínhamos telefone, então ela saiu deseperada a minha procura, só se acalmando ao me ver brincando no alpendre, junto ao meu avô.
Nem a presença dele, a impediu de me dar umas palmadas (leves, como se fossem de alívio).
Com essa figura presente, aprendi a ter responsabilidade, não mentir, respeitar os mais velhos e a lutar pelas coisas que eu acredito.
Junto com o meu pai, também me ensinou a valorizar a honestidade e o ser humano (nunca conheci pessoas que amassem tanto a convivência com outras pessoas, como eles).
Tudo bem que a minha condição humana me fez escorregar muitas vezes, mas até hoje, mesmo há quilômetros de distância, a presença deles se mantém viva no meu cotidiano.

Tradução

Noite de quarta-feira, na emissora de TV de maior audiência do país, passa o seu principal telejornal.
Notícias vem, notícias vão, entra a mocinha do tempo, o comentarista econômico, a reportagem especial e assim vai seguindo sem nenhum problema o eficiente programa.
Até que o âncora pede uma entrada ao vivo, direto do aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, da principal repórter da casa, uma jornalista muito experiente e que já tinha sido correspondente política no Reino Unido e em outros países da Europa.
Em pleno ano de comemoração do Centenário da imigração japonesa no Brasil, estava chegando o príncipe daquele país para abrilhantar as nossas festividades.
Então, ao vivo, lembrem-se, ela se aproxima de um dos integrantes da família real japonesa e faz uma pergunta em inglês.
O representante para e após um belo sorriso, responde longamente, só que em... japonês!
A nossa brilhante repórter, após uma pequena e constrangedora pausa, olha para a câmera com carinha malandra e diz:
- "Repórter Fulana de Tal, do Rio de Janeiro para o Jornal Nacional..."
O âncora engomadinho e arrumadinho dá um risinho amarelado e faz o óbvio, ou seja, arremata com um:
- "Obrigado Fulaninha de Tal. E, para vocês, uma boa noite!"
Desliguei a televisão de alma lavada...

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Acondicionamento

Um cientista russo, chamado Ivan Pavlov, fez várias experiências sobre o acondicionamento, usando animais para comprová-las.
Uma das mais conhecidas, mostrava como a associação de um som, despertava em um cachorrinho o ato da salivação.
Era mais ou menos assim, sempre que o cientista dava comida para um cãozinho, ele fazia soar uma campainha.
Não deixava em nenhum momento a associação entre a comida e o som.
Até que, passado algum tempo, era só tocar a sinetinha que, mesmo sem dar nenhuma comida, o animalzinho já começava a salivar. Ou seja, ele já estava acondicionado a esperar o seu alimento, após aquele som.
Impressionante, pois a partir daí, muito do comportamento humano passou a ser estudado sob esse olhar: o do acondicionamento.
Conversando sobre isso com uma amiga, ela me contou que tinha um cachorrinho que não se importava com o local onde fazia o seu xixizinho.
Se estava na sala e lhe desse vontade, era lá mesmo que ele fazia. Se estava na cozinha, no quintal, na garagem ou onde quer que seja, levantava a patinha e zás, batizava o lugar.
Então, ela pediu conselhos a um veterinário, sobre como treiná-lo para não fazer mais isso.
Foi-lhe recomendado, que todas as vezes que o seu cãozinho fizesse as suas necessidades em local inadequado, que ela pegasse o seu focinho e o aproximasse do xixi, dizendo de maneira firme, um "não pode".
E assim foi feito, durante semanas.
O cachorrinho fazia o xixizinho e a sua carinha era colocada próxima ao local, logo após o ato, pela sua dona.
Apesar de achar o método cruel e também pouco ortodoxo, eu acabei perguntando se tinha dado resultado.
Ela me disse, toda brejeira:
- "Olha, ele continou fazendo as suas necessidades onde lhe dava na telha, mas dali em diante, depois que ele faz, ele abaixa sozinho a cabecinha e cheira o seu xixi, sem precisar de ninguém para forçá-lo a isso."
Pronto, estava acondicionado...

Meliantes animais

Não faz muito tempo que eu estive em Foz do Iguaçu.
Adoro aquela região, principalmente o Parque das Cataratas, tanto do lado brasileiro quanto do argentino.
Trago sempre boas lembranças de lá.
Mas, a que mais me marcou, aconteceu em uma viagem no começo dos anos dois mil, que fiz acompanhado de um amigo professor.
Tínhamos decidido visitar a Garganta do Diabo, em um dia muito chuvoso, com poucas pessoas no parque.
Fizemos o embarque no ônibus que leva até as escadas que dão acesso até as quedas d'água, tiramos algumas fotos e começamos a descê-las para chegarmos à pequena trilha que nos levaria ao nosso objetivo.
Percebemos que muitos quatis foram se aproximando.
Pareciam bichinhos dóceis, mas não ousamos na nossa aproximação.
Vimos também chegar um grupo de turistas japonesas da terceira idade, com a sua guia falante e as suas inúmeras máquinas fotográficas, que não deixavam escapar nada de suas lentes.
Enquanto o meu amigo se distanciou na trilha, eu parei e fiquei observando aqueles dois grupos bem exóticos, interagindo.
As velhinhas orientais sorridentes, maravilhadas com a aproximação dos pequenos mamíferos, que faziam questão de se mostrarem sociáveis.
Até que uma delas, aparentando mais de oitenta anos e segurando uma sacola de plástico, dessas de supermercado, ficou sozinha em um cantinho, entretida com pelo menos cinco bichinhos que ficaram sobre as patinhas traseiras bem na sua frente.
Eu não entendo nada de japonês, mas pela sua expressão, ela deve ter dito algo como "que bichinhos lindinhos, guti, guti, guti...".
Antes de qualquer possibilidade de aviso, um sexto quati, veio por trás da senil mulher e pulou na sua sacolinha plástica, rasgando-a por inteiro.
A velhinha soltou um grito de horror e, todos nós, vimos estarrecidos um bando de quatis meliantes que avançaram sobre os despojos daquela ação e correram para a mata com saquinhos de batatas chips, barras de chocolates e outros alimentos.
Até então, eu só tinha ouvido falar de ação parecida, nos arrastões das praias da Zona Sul do Rio de Janeiro.
Tanto é, que todas as outras vezes que eu retornei para lá, fui sem o relógio, carteira ou celular. Não quis me arriscar...

terça-feira, 20 de julho de 2010

Professora

Eu já trabalho no mesmo colégio há mais de quinze anos e, nesse tempo, tive o prazer de conhecer pessoas bem interessantes.
Uma delas foi a Conceição, uma professora de português muito simpática e alegre.
Nos fazia rir das sua histórias e do seu jeito meio avoado.
Sempre chegava no limite do tempo e, algumas vezes, com os alunos já dentro de sala, após o sinal de entrada.
Mas, teve um dia que ela chegou no colégio e só estava presente o porteiro, "não havia chegado ninguém ainda", segundo as suas palavras!
Ficou feliz em estar tão adiantada, mas ao ser indagada pelo funcionário sobre o que fazia lá, percebeu que era... sábado!
Nunca acertava a ordem das salas e vivia me perguntando onde ela deveria entrar.
Como, óbvio, eu também não sabia, sempre eu recebia um sorriso e um "p..., como você é desinformado, cara!".
Sempre procurava desesperada os seus óculos, que sempre estavam no alto da sua cabeça.
Mais de uma vez eu a vi, tirando um cigarro do maço, para acender, mesmo já tendo outro na boca.
Num desse lapsos, chegou a pedir fogo para outro professor, com um recém aceso no canto da boca...
Apesar desse jeito meio atrapalhado, não me lembro dela ter esquecido nenhum verso de Quintana, Pessoa ou Bandeira.
Nem sequer trocar uma data ou fato relevante de literatura.
Mas, a última coisa que me lembro dela, foi no dia que me procurou no cursinho que tínhamos, no centro de Guarulhos, para me falar sobre uma vasinho de violetas, que recebemos do colégio, no dia dos professores.
Ela me disse, toda feliz, que conversava com as plantinhas e que algumas retribuíam toda a boa energia que recebiam dela.
Na sua sala tinha umas dez violetinhas que recebera de alunos e amigos e que cotidianamente as regava e ficava contando histórias para as plantinhas.
E que, de todos os vasinhos, a única que não perdia ou murchava as suas folhinhas, nem a florzinha roxa, era aquela que tinha sido presentada pelo nosso colégio.
Eu ouvi emocionado o relato da Conceição e nunca tive a coragem de dizer a ela, que aquele vasinho que a escola tinha nos dado, possuía uma plantinha de plástico...
E, por sinal, deve estar, ainda hoje, com a mesma florzinha feliz, por ouvir tantas histórias e confidências...

Consultoria jurídica

O Lourival tinha acabado de se formar em direito, em uma faculdade particular, lá na minha cidade.
Depois de várias reprovações no "exame da ordem", conseguiu se dar bem em um deles e teve concedido o direito de colocar plaquinha de advogado na frente da casa da sogra (ele morava nos fundos da residência).
Não passou muito tempo para aparecer o primeiro cliente.
Era um fazendeiro além-fronteira, bem sisudo e de poucas palavras.
Tinha "umas terras" em Itaú de Minas, outras em Cássia e mais algumas em Formiga e estava tendo problemas com um grupo de invasores do MST.
Então, ele precisava de uma consultoria jurídica e também de um advogado que pudesse resolver algumas pendências nesse processo de desocupação, que ainda seria feita, de uma de suas propriedades.
Como eram terras devolutas, griladas pelo seu avô, sabia que a desocupação não seria fácil.
Combinou com o Lourival uma pequena quantia mensal e disse que o chamaria assim que fosse necessário, na medida que os problemas fossem surgindo.
Meses se passaram, o pagamento caindo pontualmente na sua conta corrente e nenhuma notícia do fazendeiro mineiro.
Era estranho, pois o Lourival sabia que a reintegração de posse desse tipo de pendenga era muito problemático.
Até que um dia o nosso caríssimo advogado se cansou de esperar e resolveu contactar o seu cliente.
Ligou para o telefone de contato e perguntou meio sem jeito, se estava tudo bem, se os seus serviços não estavam sendo necessários, admitindo estranhar a calmaria de tão problemática situação.
Do outro lado da linha ouviu a voz pausada e rouca do seu cliente, o fazendeiro:
- "Ara! Não se preocupe não, doutor! Por enquanto nós não estamos precisando dos seus serviços, não! Porque a gente tá resolvendo tudo na bala, mesmo..."

Mutirão

Logo que eu cheguei em São Paulo, fui fazer faculdade em Guarulhos e conheci algumas pessoas que considero como amigas até hoje.
Uma delas é o Jura.
O cara é o típico paulistano da zona leste, amigo de todos, falante e de família grande.
Logo que fizemos amizade, fui convidado para participar de uma das experiências mais ricas que um ser humano pode imaginar: um mutirão.
Como sou do interior, sempre tive na cabeça os mutirões realizados na roça, feitos para ajudar algum capiau que não tinha tido tempo de concluir o serviço de capina, plantio ou colheita.
A lida começava bem cedinho, transcorria com a ajuda de dezenas de vizinhos e parentes, eram entoados vários cânticos de treição (o nome que se dava a esse trabalho coletivo na minha região) e tudo acabava em um almoço farto e com muita música de viola.
Mesmo com parentes meus participando de alguns mutirões, lá no interior, eu mesmo nunca tinha visto um, na área urbana.
Por isso, aceitei de imediato o convite.
Ainda mais porque o trabalho ia ser no litoral, em Mongaguá, aqui na Baixada Santista.
O Jura passou na minha casa no final da madrugada (me lembro que eu tinha chegado de um festa umas duas horas antes) e seguimos para o imóvel fruto dessa preciosa experiência.
No caminho ele explicou que a tarefa seria simples, pois teríamos que ajudar o pessoal a "encher a laje da casa".
Putz, o meu avô era pedreiro e eu sabia o quanto era trabalhoso aquela atividade, mas como ia ser um mutirão (várias pessoas), achei que daria conta tranquilamente do trabalho.
Chegamos um pouco atrasados, com o Sol já alto, pois eu pedi que fizéssemos uma parada para um café da manhã em Santos (tinha um padaria muito legal no Gonzaga).
O pai do Jura já deu uma dura nele, logo de cara!
Quando eu fui verificar o teor do trabalho, percebi que só tinham três pessoas lá.
Já fiquei preocupado, mas tudo bem pois eu tenho quase um metro e noventa de altura e, na época, pesava quase cem quilos (hoje peso um pouco mais), então poderia dar conta do recado.
Mas, ao colocaram sobre o meu ombro uma lata de dezoito litros cheia de concreto, quase arriei.
Caramba, eu nunca tinha carregado nada tão pesado antes, na minha vida
Derrubei tudo em cima do irmão do meu amigo, que só não me bateu pois foi impedido pelo pai.
Como não me dei bem na tarefa de carregar o concreto, fui deslocado para subir na laje e esparramá-lo pelo local.
Deram-me uma enxada, muito pequena e com um cabo já podre.
Não deu outra, pois em duas esparramadas, eu já tinha derrubado mais concreto no chão, do que sobre os tijolos e vigas.
E, na terceira enxadada, o cabo se partiu e a ferramenta foi atirada a metros de distância, mas a poucos centímetros do carro do proprietário do imóvel.
Ao tentar descer, para pegá-la, acabei pisando em um local que não deveria e derrubei uma fileira inteira de tijolos que estavam esperando uma camada de concreto.
Fui convidado gentilmente a deixar o meu posto e ir para a praia.
Fiquei sozinho lá, por um tempo e, quando voltei, o trabalho já havia se findado e o churrasco que tinham me prometido, já acabara.
Comi um sanduba na padaria de Agenor de Campos e voltei de ônibus para São Paulo, pois o pessoal ficou para fazer o contrapiso, no outro dia.
E engraçado, nem me convidaram para ficar...

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Nem titia...

A minha geração viveu a famosa transição demográfica.
De famílias grandes, com muito filhos, bem característicos dos nossos bisavós e avós, passamos a ver um mundo com casais com apenas um rebento ou então sem previsão de estabelecer uma prole.
Em muitos casos, como no meu, sequer um casamento.
Na minha casa, até pouco tempo atrás, morávamos os três irmãos com os nossos pais.
Antes do casamento da minha irmã do meio, o nosso "lar doce lar" era constantemente tomado pelo amor e pelas diferenças dos três filhos adultos de Dona Elenice e Seu Edercides.
Eu tinha o meu quarto (por sinal ainda tenho) e as minhas duas irmãs dividiam outro.
Apesar de muito unidos, a minha mãe presenciava algumas desavenças também (coisa de irmãos).
Os três namoravam, mas nada de falar em casamentos ou então em ter filhos.
E a caçula sempre era alvo de brincadeiras, pois tem o gênio mais forte de todos nós, além de ser muito engraçada também.
Num daqueles dias de discussão por coisa alguma, onde ela discordava da nossa opinião e não queria ceder por nada, a do meio tasca, sem dó nem piedade:
- "Briguenta desse jeito, ninguém vai te querer! Você vai acabar ficando para titia!"
E ela, de maneira direta e bem espirituosa:
- "Pior que nem isso! Se depender de vocês dois, nem titia eu vou ser..."
É, e não é que ela tinha razão mesmo!
Anos se passaram, e ela nem titia é...
Culpa da maturidade demográfica, do século XXI.

A birra

A minha irmãzinha do meio era uma figurinha carimbada (antigo isso, não)!
Era uma criança muito inteligente, engraçada e geniosa.
Falava de tudo, desde a mais tenra idade.
Tinha uma perspicácia incomum à outras, da mesma faixa etária.
Como na rua só tinham meninos, ela me azucrinava, ao querer brincar conosco.
Muitas vezes tínhamos que despistá-la para conseguirmos jogar bola sossegados ou então pegar lebistes nos córregos do nosso bairro.
Desde pequenininha adorava dar escândalos, principalmente quando a sua vontade era contrariada.
Não podia entrar no ônibus da Cometa para São Paulo (onde moravam os nossos avós) que já, aos berros, pedia para o motorista abrir a porta.
Os outros passageiros só a ouviam gritar:
- "Abre, abre, abreeeeee..."
Para aquietá-la o meu pai precisava pedir para que ela ficasse abaixando quando o veículo passava embaixo de alguma ponte para que não batesse a cabeça.
Outro drama era quando a nossa mãe tinha que levá-la para cortar o cabelo.
Tanto que, em um desses ataques coléricos da pequena, foi prometido que o seu cabelo nunca mais seria cortado (durante um bom tempo, a cabeleireira só aparava as pontinhas).
Sempre que alguém saía de casa, ela queria ir junto.
Amava passear (ama até hoje)...
E muitas vezes sobrava para a minha tia, o fardo de levá-la.
Tanto que, num desses dias de tempo carregado, a irmã da minha mãe tentou sair de casa sem ser notada.
Mas, para "variar um pouquinho", foi descoberta pela minha irmãzinha.
Com toda a paciência do mundo, ela explicou para a sobrinha que não daria para levá-la, já que estava com pressa e iria caminhar muito, até um bairro distante.
Depois de muito papo, a tia percebeu que a menina não cederia, então a levou consigo.
Não deu metade do caminho e a pequenininha, já cansada começou a pedir:
- "Me carrega! Me carrega! Me carrega..."
A tia, impaciente, respondia:
- "Não vou te levar no colo, não! Eu disse que era longe e te falei para não vir!"
Diante das negativas, a sobrinha não pensou duas vezes. Começou um escândalo digno de uma novela mexicana e, após vários quarteirões gritando e chamando a atenção de todos na rua, a tia para e resolve acabar com aquela cena:
- "Tá bom! Então vem no meu colo!"
Mas, a pequenininha dá dois passinhos para trás e sentencia, apontando o dedinho:
- "De jeito nenhum! A senhora vai ter que voltar e me carregar do lugar que eu pedi da primeira vez. Lá atrás!"
Nem precisa dizer que ela teve que continuar caminhando, mas dessa vez puxada pelo bracinho.
E quem poderia imaginar que, hoje, é a mais tranquila dos três irmãos...

Por um "piu"

Uma família pode ser composta por muitos irmãos que, mesmo criados de maneira idêntica, crescem com personalidades e características totalmente distintas.
Naquela casa, não podia ser diferente.
Após cinco anos sendo o centro de todas as atenções, o garotinho teve que aceitar a ideia de dividi-las com a irmãzinha recém-chegada.
Foi uma relação inicial de muita curiosidade, mas depois de algum tempo e tendo a certeza que não mais seria o único a receber brinquedos, doces e carinho, começou a ter o difícil sentimento do ciúme.
Tanto que, no primeiro aniversário dela, a mãe teve que espalhar brinquedos pelas duas camas, cantar parabéns para os dois (a pequeninha não estava nem aí, até curtia tudo) e fingir que também comemorava alguma coisa para o primogênito.
Os parentes até tinham se acostumado com os ataques de choro e birra, quando a irmãzinha recebia mais atenção do que ele.
Mas, independente disso, os dois cresceram muito amigos, brincando sempre unidos, aprontando muito e sofrendo as consequências, também juntos, das suas travessuras.
As brigas eram comuns, mas foram diminuindo com o tempo.
Até que, surge uma nova criaturinha.
Quatro anos mais nova que a irmãzinha, que seria ainda mais mimada e protegida do que os outros dois.
Bonitinha, tranquila, calma e muito meiga.
Todos se encantavam com ela, inclusive os seus dois irmãozinhos maiores.
Com a família morando em uma casa bem pequena, de apenas dois quartos, construída nos fundos do terreno da sogra, se fez necessário comprar uma beliche para acomodar os dois irmãos maiores em um dos quartos, que antes era ocupado apenas pelo mais velho e o berço que estava no quarto dos pais passou a ser da caçulinha.
É claro que, essa obrigação de dividir quase o mesmo pequeno espaço, fez surgirem novas rusgas entre os dois mais velhos.
Brigava-se por quase tudo, mas principalmente pelas preferências distintas, em relação à iluminação do quarto.
O maior, que dormia na parte de cima e tinha a lâmpada bem no seu rosto, queria o quarto apagado.
A do meio, que tinha uma pequena penumbra proporcionada pela presença da cama de cima e tinha muito medo de escuro (dizia que o ambiente totalmente apagado lhe dava "falta de ar"), preferia a lâmpada acesa.
E a caçulinha no quarto dos pais, reclamava que não conseguia dormir devido aquela bagunça dos outros dois.
Chegava a ser engraçado, pois o mais velho descia do beliche e apagava a luz. A irmãzinha esperava ele subir e ia até o interruptor e acendia-a.
O outro descia, apagava novamente e ameaçava a irmã.
Ela esperava um pouco e com ele já na cama de cima, acendia de novo.
E assim a noite avançava, só acabando quando algum dos dois cedia.
Mas, em um desses dias de impasse, sem nenhum deles ceder, começou uma grande bagunça. O pai já cansado resolve intervir.
Vai até o quarto, chama de maneira ríspida a atenção de ambos, e decreta:
- "Se eu ouvir mais um pio nesse quarto, os dois vão dormir quentes (é fácil entender o que é dormir quente)..."
Quando tudo levava a crer que a paz estaria reestabelecida naquele local, ele vira as costas e, antes de sair do quarto, escuta:
- "Piu..."
Gargalhada geral, uma boa surra e a caçulinha, no outro cômodo, de alma lavada pelo corretivo aplicado.
E assim, ficavam ainda mais unidos os três irmãos...

Lógica infantil

O menininho era muito inteligente.
Nos seus quase dois anos, prestava atenção em tudo e aprendia com uma facilidade incrível.
E como toda criança nessa idade, adorava ser o centro das atenções.
Nas palavras simples que já pronunciava, encantava a todos com a sua esperteza e perspicácia.
A mamãe orgulhosa vivia contando às amigas as divertidas "tiradas" do seu filhinho.
Contava também que às vezes o precisava repreender por algumas travessuras.
Mostrava o olhar de reprovação ao vê-lo abrir a porta da geladeira e jogar alguns objetos no chão, quando ele batia com a mãozinha no rosto de alguém que lhe pegasse no colo, ao dar alguma birrinha sem razão, ou então, quando ele chacolhava o gato para chamar a atenção de alguém (o pobre do bichano nem reclamava, ficava quietinho, parecendo ser cúmplice daquela forma de protesto).
Como somente repreender com a "cara torcida" já não adiantava mais, fez-se necessário adicionar algumas palavras de maneira mais enérgica para que a bronca surtisse efeito:
- "Não, não pode!"
Claro que o oposto também era tratado com alegria e palavras de aprovação.
Ao fazer algo correto ou muito bonitinho (as crianças sempre fazem coisas bonitinhas), vinha uma palavra de incentivo, seguido de um belo sorriso dos seus pais:
- "Isso!"
E assim a vida seguia, naquele gostoso lar, enfeitado pela onipresença do nosso querido protagonista.
Coisas erradas, vinha um "não, não pode" e com as coisas certas ou legais, um "isso".
É óbvio que, com a sua inteligência, o menininho gostava do olhar aprovador e da palavrinha incentivadora dos seus papais na mesma proporção que adorava chamar a atenção da casa.
Então, unindo o útil ao agradável, em uma lógica quase dialética, se postou em frente à televisão, no momento de maior suspense do filme que os seus pais estavam assitindo, e desligou a televisão.
Os dois muito bravos, antes de qualquer ação, se surpreenderam com o pequenininho, que disse:
- "Não, não pode!"
E, imediatamente, ele liga a TV e arremata, deixando os seus genitores ainda mais perplexos:
- "Isso..."
Já pensou se a moda pega!

terça-feira, 22 de junho de 2010

Jogatina

Tem gente que não gosta de perder nem no par ou ímpar.
Outros nascem para o jogo (ou para jogar).
O meu avô era um deles.
Desde pequeno ficava apreciando as corridas hípicas bem comuns no interior do estado, onde grandes fazendeiros montavam poderosas equipes para não fazer feio nas competições, principalmente por correr muito dinheiro nelas (de apostas, é claro).
Já mocinho, viu muitas rinhas de galo e, mesmo não aprovando a crueldade delas, ia vez ou outra, somente para apostar algo.
Depois de adulto, formado em contabilidade e muito bem remunerado, sempre deixava boa parte dos seus rendimentos em alguma mesa de carteado, na loteria esportiva, em bilhetes da Federal ou no jogo do bicho.
Bastava ver alguma placa de automóvel, um número de casa ou uma combinação algébrica que lhe parecesse bonita, que ele logo jogava.
E, diga-se de passagem, até conferir o resultado, tinha a certeza que ganharia o prêmio.
Para se ter uma ideia, até na diversão da família, o jogo tinha um papel importante.
Quando ele viajava e visitava a casa de algum parente, o principal entretenimento era o baralho. Uma partidnha de buraco com as irmãs e sobrinhas (como ele circulava bem entre as mulheres, era impressionante) ou então um truco com os cunhados e sobrinhos.
E, independente do teor do jogo, ele nunca gostava de perder.
Quase sempre se aborrecia com os seus parceiros e esbravejava quando era contrariado na sua indelével lógica de jogador.
Quando ainda morava em Franca, lá pelos idos da década de 40, com os filhos ainda pequenos, também adorava visitar os parentes e amigos para um joguinho.
Era nos sábados à noite que rolava uma partidinha de víspora (ou vispa, como era conhecida lá na cidade, o jogo de tômbola ou bingo), sempre na casa do tio Jaime.
Já no final da tarde, a minha avó arrumava os filhos, dava o jantar mais cedo e por volta das seis da tarde, todos se dirigiam à casa da tia Maroca (irmã do meu avô e esposa do tio Jaime) para as costumeiras noites de sábado.
Enquanto a meninada se divertia na rua, os adultos se reuniam ao redor da pesada mesa de imbuia para as tradicionais partidas de vispa.
Todos levavam na brincadeira, menos o meu avô!
Queria sempre ganhar e não admitia jamais algum tipo de falcatrua que beneficiasse algum dos presentes.
Geralmente, começavam com sorrisos e brincadeiras e, quase sempre terminavam com o meu saudoso velho esbravejando impraupérios e saindo antes do jogo findar-se.
Era muito engraçado, pois todos sabiam do gênio forte dele e da sua "grande competitividade" e, mesmo assim gostavam de provocá-lo quando as pedras não saíam para que ele marcasse alguma sequência.
E, em muitos dias, ele se irritava tanto, que acabava com o jogo rasgando as cartelas de todos na mesa.
Apesar de parecer violento, os parentes nem ligavam e só as crianças achavam ruim ter que encerrar a brincadeira por conta do estresse de algo que deveria ser apenas diversão.
Era nessa ordem: aborrecimento, cartelas rasgadas, impraupérios e a família toda voltando para casa, com a promessa que ele nunca mais participaria de nenhuma partida, naquela casa.
Mas, como eu disse, o meu avô não conseguia ficar sem jogar, muito menos sem visitar a casa da irmã, no sábado à noite.
Então, no final de semana seguinte, acontecia sempre a mesma rotina: a minha avó arrumava os filhos, dava o jantar mais cedo e por volta das seis da tarde, todos se dirigiam à casa da tia Maroca.
Depois dos cumprimentos e de alguma conversa, o meu avô começava a ficar irriquieto, as pernas balançavam freneticamente, os dedos saltitavam uns sobre os outros, até ele não aguentar mais e sugerir aos presentes:
- "Pois é, bem que a gente podia jogar uma partidinha de vispa, né!"
E após a revolta dos parentes (que já sabiam que ele iria fazer aquela proposta), o meu tio sempre lembrava:
- "Claro que a gente podia jogar, só que você rasgou as cartelas no sábado passado, lembra!"
E ele, com a cara mais lavada do mundo:
- "Não tem importância, não! Eu comprei outras..."
E assim a vida ia seguindo, na gostosa rotina de sábado à noite...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Gringos brasileiros

Conversando dias atrás com uma amiga de Franca, pelo msn, enviesamos pelo lado das coisas da nossa infância e chegamos nas músicas que ouvíamos.
Além do caipira (como as famosas duplas sertanejas) e o brega romântico, que já crescia na época, também escutávamos muito uma música romântica cantada em inglês, que só era tocada nas rádios e vendida nos discos (os saudosos bolachões). Nunca conseguíamos assistir esses cantores pela TV ou ficar sabendo de algum show deles em nenhum lugar do Brasil ou do mundo.
Era super estranho, pois só eram escutados, jamais vistos.
Mas, mesmo assim compunham os hits que embalavam os bailinhos da nossa infância e pré-adolescência.
Tinham nomes pomposos como Tony Stevens, Mark Davis, Paul Denver, Morris Albert, Chrystian, Patrick Dimon, Dave Maclean, entre tantos outros.
Havia também grupos e bandas que se revezavam nas paradas de sucesso com outras tantas já conhecidas internacionalmente, entre elas os Pholhas, Light Reflections e as gatinhas das Harmony Cats.
Era comum acontecer o lançamento dos maiores sucessos das novelas em dois LPs, um com sucessos nacionais e o outro com os internacionais (onde apareciam boa parte desses cantores e grupos).
Com o passar do tempo o sucesso deles foi diminuindo e com o maior espaço dado à música brasileira nas rádios e TVs, desapareceram na década de 80.
Só depois de adulto, já em São Paulo é que eu fiquei sabendo que os meus antigos ídolos estrangeiros eram na realidade: brasileiros!
Uns nascidos no Rio de Janeiro, outros em São Paulo, alguns na Bahia, etc., etc., etc...
Alguns deles, inclusive, se tornaram cantores famosos na nossa língua pátria.
Por exemplo, o tal do Mark Davis era na realidade o Fábio Jr.
Isso mesmo, o Fábio Jr., aquele do “obrigaduuuu”, do “Pai”, que virou até ator em algumas novelas globais.
O Tony Stevens era o Jessé, uma das mais lindas e afinadas vozes masculinas que eu já conheci, intérprete de vários hits famosos como “Porto Solidão”, que partiu muito cedo, em um acidente automobilístico perto da cidade natal da minha mãe, Ituverava.
O tal do Chrystian fez dupla sertaneja com o seu irmão Ralf, emplacando diversos sucessos nas décadas seguintes.
E outros desapareceram da mesma forma que surgiram, envoltos em um grande mistério, onde não tivemos mais nenhuma notícia após o sucesso de hits únicos.
Na época, lançavam os seus sucessos (lindas composições, por sinal) em discos coletivos sob a marca Hits Brasil (com as bandeiras dos Estados Unidos e Brasil) ou então em compactos com apenas duas músicas (os mais novos nem sabem o que é isso).
Mas, o mais importante era que esses “falsos gingos” eram músicos competentes, geralmente a frente de bandas de bailes ou então músicos de estúdios. Por isso, emplacavam grandes sucessos.
Para se ter uma idéia do alcance dessas músicas, o mais famoso deles, Morris Albert (o carioca Maurício Alberto Kaiserman), autor de “Fellings”, emplacou o seu sucesso em mais de 50 países e teve regravações até de Frank Sinatra e Julio Iglesias. Depois de se tornar um dos hits mais tocados em todos os tempos, amargou um processo de plágio na corte americana e teve que pagar mais de 3 milhões de dólares para um compositor francês.
Tinham histórias interessantíssimas como a do brazuca Terry Winter (quem poderia desconfiar que ele era brasileiro), que revelou a sua verdadeira identidade no programa do Sílvio Santos (um dos mais assistidos da época). Um dos seus maiores sucessos foi “Summer Day” (linda, linda). Outro foi “Our Love Dream”. Nessa sua revelação disse que mudaria de nome para Thomas Williams (o que nunca fez). Na realidade, deixou de cantar, mas continuou a compor com o pseudônimo de Chico Valente (esse sim, bem brasileiro), se engajando no estilo sertanejo. Junto com o parceiro Nil Bernardes (ou Neil Bernard, com quem compôs “Summer Holiday”), fez um dos maiores sucessos da década de 90, a música “Rei do Gado” (sim, aquela mesma da novela).
O mais interessante disso tudo é que muitos desses artistas não entendiam patavinas de inglês!
Isso mesmo!
Não sabiam falar quase nada do idioma que cantavam.
Por isso, evitavam aparecer em programas de TV e, principalmente, fazer shows ao vivo.
Deveria ser frustrante, pois vendiam milhões de discos e não podiam capitalizar mais com apresentações nas diversas cidades do nosso país, pois seriam facilmente “desmascarados”.
Então, como conseguiam compor?
Pesquisei na internet e retirei essa notícia de uma antiga edição da Revista Veja (edição de 1999, época de relançamento de alguns hits, no Cd Hits Again, da Som Livre).
Veja só:
“(...)Em geral, os artistas aprendiam a pronunciar palavra por palavra das letras em sessões de gravação que duravam até quinze horas. "As letras eram compostas por quem não sabia nada de inglês e corrigidas por quem tinha alguma noção", diz Hélio Costa Manso, ou melhor, Steve MacLean, que fez sucesso numa carreira-solo e como integrante do conjunto Sunday. Os Pholhas tinham um método original de compor. Eles tiravam os versos de suas canções de um livro dos anos 30 chamado Inglês Como Se Fala. "A gente achava uma frase legal, copiava e depois tentava emendar com outras do mesmo livro", confessa Oswaldo Malagutti, ex-baixista do grupo.(...)”
Vale a pena conferir.
Entrem no You tube e procurem alguns desses sucessos.
Eu separei alguns deles, de acordo com a minha memória e preferência.
Segue a lista com as dicas...
- TERRY WINTER – “Summer Holiday” e “Our Love Dream”
- PAUL DENVER – “Rain and Memories’ (com o indefectível refrão “I confuse the rain with memories”)
- EDWARD CLIFF – “Nights of September” (essa merece uma atenção especial, pois parecia um indiano cantando em inglês). O verdadeiro nome desse cantor, que tem deficiência visual, é Jean Carlos e vocês ainda podem vê-lo interpretando músicas religiosas no canal “Século XXI”.
- TONY STEVENS (o Jessé) – “If Could Remenber”
- MARK DAVIS (o atual Fábio Jr.) – “Don’t Let Me Cry”
- CHRYSTIAN (sim, o sertanejo da ex-dupla com o Ralf) – “Please Don’t Say Good Bye”
- MORRIS ALBERT – “Fellings”
- SUNDAY – “I’m Gonna Get Married” (fantástica)
- PETE DUNAWAY – “You’re The Reason”
- GLENN MICHAEL – “Just Imagine”
- JULIAN – “Angel”
- o grupo LIGHT REFLECTIONS – “Tell Me Once Again” (aquela que virou versão do Ney Matogrosso: “Telma Eu Não Sou Gay”)
- DAVE MACLEAN – “We Said Goodbye” e “Me And You”
- o ainda ativo grupo PHOLHAS – “She Made Me Cry” e “My Mistake”
- PATRICK DIMON (que eu encontrei morando no Ceará, em Fortaleza) – “Pigeon Without a Dove”.
Confiram essas preciosidades. Com certeza, vocês vão gostar de muitas delas ou então achar que, de fato, eram americanas ou inglesas de verdade (menos aqueles que dominam muito bem o idioma do Shakespeare, é claro).

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Técnico de futebol

Na semana que passou, foi divulgada a lista de convocados para jogar a Copa do Mundo de futebol, na África do Sul.
Como sempre, causou mais descontentamentos do que elogios.
Uma interminável sabatina, foi feita, para que o treinador pudesse justificar algumas escolhas.
Jogadores bem habilidosos e com forte apelo popular, ficaram de fora dessa lista.
Eu mesmo achei que o "professor Dunga" (ainda hoje eu não entendo porque todos os treinadores são chamados de professor se, a maioria deles, nem tem essa formação) poderia ter sido mais ousado em um ou dois nomes.
Mas, como vou torcer de qualquer forma pelo escrete canarinho, me importei pouco pela ausência dos jogadores X ou Y.
Contudo, não invejo, neste momento, a posição do nosso caríssimo professor em questão (o Dunga).
Foram tantas críticas e desaforos (alguns até de caráter pessoal) que já coloquei essa profissão (a de treinador da seleção brasileira) no rol de ocupações que eu não jamais gostaria de exercer, como de maquiador de cadáveres, pescador de caranguejos no Mar do Alasca, carvoeiro, goleiro do Corínthians e taquígrafo.
Prefiro continuar no papel de torcedor e corneteiro.
Inclusive, presenciei "in loco" várias manifestações pouco amistosas da fanática torcida do meu time interiorano contra alguns treinadores que já dirigiram a "Veterana da Alta Mogiana".
Uma dessas vítimas era o Barbosinha (nome fictício).
Ex-jogador do clube, filho da terra e um quebra galhos eterno, o nosso "professor/treinador" sempre era chamado depois da saída de algum técnico.
Era, de fato, um "tapa buracos".
Nunca entendi o porquê do Barbosinha sempre aceitar esses pedidos para assumir o time após a saída de algum treinador, pois geralmente isso acontecia porque a equipe andava mal das pernas e mais perdia do que ganhava.
Óbvio que muita coisa não mudava, apenas pelo fato de aparecer um comandante "novo" na quase naufragada embarcação.
Mas, o importante é que o Barbosinha aceitava...
E nos matava de raiva!
Num desses episódios com o time perdendo em casa e jogando muito mal, um sujeito de quase dois metros e mais de cem quilos, colou no alambrado, atrás do banco de reservas e não parava de chamar o "nosso professor" de burro.
Ele saía do banco de reservas para passar alguma instrução para os jogadores e o cara chamava o técnico de burro.
Então, o Barbosinha resolveu ousar e colocou para aquecer um centroavante "prata da casa", que como jogador de futebol era um excelente sapateiro (inclusive essa era a sua profissão de segunda a sexta) e causou mais irritação ainda do seu ferrenho crítico, coladinho na grade do alambrado com mais um copo de cerveja na mão.
Só para ilustrar, era só o Tetê (nome real) começar a aquecer, que a torcida já gritava: "Tira o Tetê, tira o Tetê!".
Foi uma escolha infeliz, mas como ele era o comandante, entrou o nosso contestado centroavante reserva.
Mais uma vez, o gordo atrás do banco de reservas não perdoou:
- "Burro, como você é burro, cara!"
Mas, como o futebol é imprevisível, sem nenhuma lógica, logo no primeiro lance, a bola sobra limpinha para o Tetê e, de canela, ele empata a partida.
Comoção geral, o treinador sorri e olha de maneira fulminante para o seu tão ferrenho crítico, movimentando a cabeça de maneira inquisidora, quase que perguntando: "e agora".
Sem pestanejar, o cri-cri do alambrado, ainda pulando de alegria, emenda:
- "Pois é, Barbosinha, você é um burro de sorte..."

sexta-feira, 23 de abril de 2010

O outro lado da cama

Quarenta anos!
Praticamente meia vida!
A grande lição que tirei desse tempo todo é que olhar somente para dentro é um grande desperdício.
O mundo tá aí!
E nessa minha primeira noite que passei na casa dos quarenta, resolvi mudar.
Comecei mudando o lado em que eu me deitava, todas as noites, nos últimos anos.
E, apesar de dormir sozinho em uma cama muito grande , dessas tipo "king size", eu sempre ocupava o mesmo lado dela.
Isso fez uma pequena concavidade no colchão.
Então resolvi dormir do outro lado.
Amanheci um outro homem!
Descansado, renovado e muito vívido.
Depois, me pus a pensar na quantidade de noites mal repousadas e dias sonolentos que tive, devido a um costume teimoso e inexplicável de só dormir no mesmo lado da cama.
Revolucionei o meu dia, com uma simples mudança na minha noite.
Então, me esforçarei para que esses outros quarenta anos que eu ainda vou viver, sejam tão renovadores, como o outro lado do colchão...

terça-feira, 20 de abril de 2010

Megassena

Sempre tive na família pessoas que gostam de apostar em alguma forma de jogo.
Felizmente, nada compulsivo, como aquelas velhinhas que frequentam o submundo dos bingos clandestinos ou os fanáticos pelo colorido iluminado dos caça níqueis, que ainda estão espalhados pela periferia da grande São Paulo.
Lembro-me bem do meu avô paterno, que sempre fazia os seus joguinhos na loteria esportiva e na loto.
Chegava a suar frio quando começava acertando algum número na sua conferência (não me lembro dele ter acertado mais do que dois números em nenhum jogo).
Essa sua mania (ou seria vício) passou para o seu filho do meio, no caso, o meu pai.
Sempre que pode, ele faz os seus joguinhos (prefere a megassena), usando a mesma combinação de números, que retirou das datas de nascimento dele, da minha mãe e da minha tia.
Impreterivelmente, três jogos de seis números.
Diz que quer acertar junto com outros apostadores para que nunca saibam quem acertou o conjunto de números. Gosta do anonimato para essas coisas.
Um dia desses, inclusive, teria acertado uma quina e duas quadras, se não se esquecesse de jogar (quase chorou de raiva).
Todo domingo, ele sai com o cachorrinho da família para comprar o jornal da cidade e conferir o resultado do sorteio do dia anterior (faz isso, mesmo quando não joga).
É uma rotina interessante.
Num desses domingos em que eu o visitava, acordei muito cedo e entrei no computador para ler algumas mensagens.
Ao abrir a página do site, vi que havia um único acertador da megassena acumulada, justamente da cidade de São Paulo.
Anotei os números que foram sorteados, em um pedaço de papel, e esperei o meu pai chegar com o jornal.
Ao entrar na cozinha, fui até ele e mostrei o papel que eu havia copiado da tela do computador, dizendo que eu os havia jogado, mas tinha deixado o bilhete no bolso do meu avental de professor.
Ele achou interessante a minha iniciativa, já que eu nunca jogo ou aposto em nada que envolva dinheiro ou outros bens.
Brincou até que a minha sorte de principiante poderia trazer algum acerto.
Quando ele começou a conferir os números, acreditando que eu havia jogado, de fato, arregalou os olhos e começou a tremer (o jornal balançava como se estivesse em uma manhã de muito vento).
Olhou para mim e com uma voz embargada, me perguntou se era verdade mesmo.
Óbvio que temendo o pior, eu disse que era uma brincadeira, pois eu já sabia a sequência sorteada.
Até hoje eu não sei se a expressão dele, após aquele momento foi de decepção ou de alívio!
Mas, o que eu tenho certeza, é que ele nunca mais vai acreditar em mim, nem quando eu tiver que revelar que fui o único acertador da megassena acumulada da semana passada...

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Moldura

Eu sou do tempo do filme de máquina fotográfica.
Inclusive fui um dos últimos na cidade a abandonar definitivamente a máquina analógica (aquela que precisava comprar filme e depois revelá-lo).
Confesso que também não me adaptei muito com as digitais, mas mesmo assim tenho uma para clicar alguns momentos básicos, como reuniões em família e OVNI's.
Mas, tenho que admitir que era um grande barato ter que clicar algo e só ver o resultado final após a revelação.
Eu demorava muito mais para focalizar, para chegar a um enquadramento perfeito ou então para usar todas as benesses de uma boa luminosidade.
De fato, não era legal "perder fotos", algo comum quando não tínhamos a paciência ou as técnicas necessárias para um resultado satisfatório.
Pior ainda era quando buscávamos as revelações nas "fotóticas da vida" (acho que isso nem existe mais) e a mocinha nos mostrava alguma foto mal enquadrada ou com aquele indefectível dedo, na frente da paisagem.
Isso só não era pior do que o fotógrafo colocar o seu retrato 3X4 na vitrine, ao lado de dezenas de outras pessoas com feições sérias, parecendo um grande quadro de "procura-se"...
Mas, havia também o outro lado, que era quando tirávamos fotos perfeitas e ao receber elogios das atendentes, saíamos andando feito um Sebastião Salgado.
Em uma dessas vezes, captei umas imagens tão interessantes, feitas com filtro na lente da minha Canon, que mereciam uma ampliação 20x30, daquelas que serviriam de presente para amigos e parentes próximos.
Escolhi três fotos e pedi para ver algumas molduras que melhor valorizariam as imagens.
Haviam várias opções, mostradas por uma balconista de olhos negros e muito linda que, por sinal, havia se encantado com a minha sensibilidade ao captar tais instantâneos.
Gostei de um porta retratos feito com um sanduíche de vidros, com quatro parafusos prateados, bem discretos.
Para fazer uma pequena graça para a atendente e mostrar que além da minha sensibilidade fotográfica, eu também tinha um bom senso de humor, fui logo comentando:
- "Gostei desse daqui, mas só espero que não venha com o retrato dessa mocinha feia e vesguinha, aqui da foto."
A moça, toda sem graça, foi logo retirando a imagem que estava no porta retratos e antes de me passar a mercadoria, me responde:
- " Eu disse para o meu pai que eu não sou fotogênica mesmo. Mas, mesmo assim ele insistiu em colocar a minha foto da época que eu estudava no colegial..."
Engoli seco, desculpei-me, tentei consertar a indelicadeza, mas fui embora com a certeza que a minha sensibilidade durava apenas o instante de um clic.

sábado, 3 de abril de 2010

Eterna gravidez

Ser mãe é um sonho possível para muitas mulheres.
Mas, para outras, é um caminho que deve ser trilhado com muita fé e persistência, pois encontram muitas dificuldades para engravidar.
No colégio onde trabalho, havia uma dessas senhoras que, pelo excesso de peso e avantajar dos anos, ainda não havia conseguido concretizar esse sonho.
E era de conhecimento de todos nós, que a lei do "crescei-vos e multiplicai-vos" estava no topo da lista das suas necessidades.
Inclusive, a sua situação nos comovia muito, principalmente porque deixava a sua auto-estima lá no chão de ardósia, das salas de aula da nossa escola.
Comovidos, sempre que podíamos, a deixávamos mais leve (apesar dos seus mais de cento e vinte quilos), com brincadeiras delicadas e elogios ao seu bom aproveitamento como professora (o que era mentira, já que os alunos não gostavam muito da sua metodologia, não).
Até que, no final do ano letivo, após uma notada ausência dela, recebemos a agradável notícia que ela estava grávida.
Ficamos felizes, de verdade, principalmente por saber que ela merecia tamanha alegria.
O ano virou, meses se passaram e, mesmo sem perceber muita diferença no seu corpo, vibramos pela segunda vez quando ela nos contou que seria mamãe de uma linda menininha, que receberia o nome de Vitória (nem precisa explicar o porquê).
Chegou o mês de junho e por complicações entendíveis, ela antecipou o parto e, mesmo prematura, deu a luz, de fato, a uma linda menininha.
Vieram as férias e fomos visitá-las já em casa, onde conhecemos o orgulhoso papai do lindo bebê.
Em agosto, após as nossas merecidas férias, a mais nova mamãe foi até o colégio, sozinha, já que tinha deixado o seu bebezinho bem protegido do frio seco daqueles dias, na casa da avó materna.
Me encontrou no balcão da xerox, quando me confidenciou a dificuldade de perder o peso necessário para conseguir dar uma boa qualidade de vida à sua filha.
Nisso, chega o mais distraído e simpático professor do colégio, o meu grande amigo Toninho.
Com toda a sua delicadeza, nos seus dois metros de pura desorientação, dá um beijo na professora, coloca a mão na sua barriga e pergunta, com toda a inocência do mundo:
- "E aí, professora, vai nascer quando?"

Toninho

Nesses dias de intenso trabalho, em que não tenho tido tempo para quase nada, dei-me uns minutos de reflexão sobre outras épocas, onde trabalhava-se menos e vivia-se muito mais intensamente.
Revivi, em pensamento, um pedacinho do final da década de noventa, ao lado de um grande e inesquecível amigo: o Toninho.
Grande não só na estatura ou na simpatia, mas também na lealdade que uma boa amizade necessita.
O cara era notado onde passava, mesmo quando não se conseguia vê-lo.
Falava tão alto que, da sala dos professores do colégio, conseguíamos perceber que ele estava adentrando no mesmo.
Era o rei da simpatia, pois conversava com todos e com tudo (mais de uma vez peguei ele esbravejando contra o computador, que teimava em não atendê-lo).
Sempre tinha um comentário pertinente para qualquer situação que vivia ou que lhe contassem.
Era muito engraçado, mesmo quando não queria sê-lo.
Vivia situações que só aconteciam com ele.
Em uma visita à Florianópolis, sua terra adotiva, pude perceber o quanto era importante para ele o respeito entre as pessoas.
Primeiro porque ele se julgava o rei de Floripa (e era mesmo). Depois porque ele odiava o jeito desrespeitoso de alguns gringos em relação aos manezinhos, os nativos da ilha.
Tinha birra especialmente de "nostros hermanos portenhos".
Em um sábado nublado e de pouco movimento na praia da Barra da Conceição, estávamos sentados em uma agradável barraca, na areia, quando surgiu um grupo imenso de argentinos, indo do calçadão em direção ao mar.
Meu amigo, logo que visualizou o grupo, já torceu o nariz e comentou em voz alta: esses caras acham que são os donos da praia!
Fiquei um pouquinho apreensivo, pois percebi que eles iam passar justamente do nosso lado.
Não deu outra, pois quando a trupe portenha cruzou a nossa mesa, nos jogou bastante areia, com os seus chinelões e seu andar arrastado e insolente.
O Toninho levantou-se indignado e gritou com o grupo que já se afastava:
- "Hei, cambada! Onde vocês pensam que estão? Aqui é o Brasil, seus vagabundos. E se não quiserem levar uma surra tem que aprender a se comportar."
Claro que as palavras não foram bem essas, mas mesmo não as reproduzindo "ipsis literis", acho que deu para se entender a indignação do meu amigo.
Eu também me levantei e quase que implorei para ele:
- "Deixa disso, cara, pelo amor de Deus! Eles não fizeram de propósito não!"
Na mesma hora, o Toninho me respondeu com aquela voz rouca e num tom audível em toda Florianópolis, que faria aqueles caras respeitarem as regras do local, nem que fosse na marra.
Quando vi que o grupo parou e que voltou em nossa direção, pensei na estratégia de pegar uma cadeira, acertar um deles com toda a minha força e sair correndo como nunca fiz em toda a vida.
Mas, para o meu espanto e deleite total do meu amigo, o mais cabeludo deles se aproximou e, em nome do grupo, se desculpou educadamente pelo gesto deselegante dos seus amigos.
Então eles retiraram os chinelões e, com eles nas mãos, seguiram o seu caminho de cabeça baixa até a areia mais dura, nas proximidades da água.
Juro que ouvi até aplausos de alguns banhistas nas mesas ao lado.
Nem precisa dizer que o meu grande amigo, agigantou-se ainda mais e me mostrou, de verdade, o que era ser o "rei da praia".
E, que hoje, sinto muita saudade da sua amizade.
Um forte abraço, meu rei!

terça-feira, 16 de março de 2010

Azar no jogo, sorte no amor...

O Antenor era um sujeito pacato.
Muito honesto, trabalhador e apaixonadíssimo pela Dorinha.
Namoraram por muito tempo e parecia que eram feitos um para o outro.
Todas as vontades da namoradinha eram satisfeitas pelo bom coração do Antenor.
Mesmo morando distantes, em uma cidade tão grande como São Paulo, se viam praticamente todos os dias.
Namoravam no Ibirapuera, na Paulista, nos cinemas do Shopping Frei Caneca, nos jardins do Vale do Anhangabaú, entre tantos outros pontos bem conhecidos da "terra da garoa".
Também frequentavam alguns restaurantes e bares da Vila Madalena.
O nosso bom e apaixonado protagonista fazia questão de proporcionar boa diversão à Dorinha.
Só não era perfeito, pois a família dele não tinha ido muito com a cara da sua nova namoradinha.
Mas, era natural, pois Antenor além de ser o único homem entre tantas mulheres (cinco irmãs e mãe viúva), também era temporão, com uma grande diferença de idade com a caçula das irmãs.
Ele entendia esse ciúme que rolava entre a sua família e Dorinha.
Mas, não se aborrecia, mesmo quando a sua já velhinha mãe, reforçava que ele merecia uma pessoa melhor (ela vivia desconfiando das boas intenções da sua namorada).
Esse paraíso começou a se modificar, quando o rapaz foi conhecer a família da moça.
Já ficou um pouco preocupado ao chegar no distante bairro dela e ver a desenvoltura que ela tinha ao circular entre os rapazes da sua rua.
Ele ficou até um pouco constrangido com os olhares de algumas pessoas, que seguravam sorrisos ao vê-los de mãos dadas.
Inclusive, no local ela era conhecida como Dadá.
Estranho, não!
Se ainda fosse Dodó, já que a sílaba inicial do seu nome era essa...
Ao chegar na casa dela, conheceu os seus parentes mais próximos que trataram o Antenor como um rei, como um novo membro da família.
Ele já se sentia tão íntimo, que até os problemas financeiros da casa, lhe eram contados.
Prometeu ajudar a todos, com o seu minguado salário de funcionário público e como avalista de alguns empréstimos que seriam feitos.
Ficaram noivos naquele mesmo dia e se casaram com uma rapidez assustadora, sem o consentimento da contrariada família do moço.
Foram morar na casa dela, com o nosso bom Antenor fazendo qusetão de comprar tudo novo, de tv de plasma a vídeo game de última geração para o seu cunhadinho de oito anos.
Estava tão endividado que não conseguia mais nenhum crédito para novas aquisições que poderiam agradar ainda mais a família da sua esposa.
Quando todos perceberam que ele já não conseguia mais se manter, devido a tantas dívidas, o colocaram contra a parede.
Afinal de contas, eles estavam morando "de favor" naquela casa e Antenor deveria contribuir ainda mais para o orçamento daquele desiquilibrado lar.
Aí, o bom e calmo rapaz estourou.
Como ele deveria ser mais participativo, se todas as dívidas por ele contraídas tinham sido em prol daquela mal agradecida família?
Subiu nas tamancas e disse que iria para a casa de seus pais, com a sua mulher.
Mas, para a sua surpresa, a Dorinha fez carinha de desdém e disse que não sairia da casa da mãe, pois afinal de contas não era mulher para morar de favor com a sogra.
Juntou as roupas do Antenor e lhe desejou boa viagem.
O rapaz quis voltar atrás, mas foi quase enxotado daquele lugar.
Muito arrependido, foi caminhando devagarzinho até o ponto da lotação, quando uma vizinha chegou ao seu encontro e lhe contou algo que o deixou ainda mais estarrecido: ela disse que todo o bairro conhecia as muitas histórias de infidelidade da sua esposa, muitas delas, inclusive, ainda quando eram namorados.
Antenor quase enlouqueceu!
Mudou a direção e saiu caminhando aleatoriamente, sem rumo.
Parou em frente a uma banca de anotação de "jogo de bicho" e raciocinou: "dizem que quem tem azar no amor, tem sorte no jogo"...
Não pensou duas vezes.
Pegou o que ainda lhe restava nos bolsos e, na esperança de reaver parte do que tinha perdido, jogou tudo na vaca, na cabeça.
No final da tarde foi conferir o resultado da aposta, animadíssimo, e para a sua surpresa...
Deu burro!

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Criancinha

Só quem tem uma pecinha dessas em casa, sabe do que eu vou escrever.
O Dieguinho tinha oito aninhos e nunca tinha passado uma noite fora de casa.
Sequer dormira antes, na casa de algum parente.
Era um menininho frágil, branquinho, de cabelos encaracolados, com um olhar sofredor, sob um par de óculos bem redondinhos.
Muito mimadinho pela sua mamãe, era temporão, com mais de quinze anos de distância dos seus irmãos mais velhos.
No colégio tinha poucos amiguinhos e vivia grudado na barra da saia da professora.
As aulas de educação física eram um inferno, pois não gostava das brincadeiras esportivas, nem das atividades de sociabilização, promovidas pelos educadores.
Sempre arrumava alguma doença ou desconforto, nesses momentos, para sair da quadra para o aconchego seguro da enfermaria (e também da enfermeira, que parecia a vovó Dolores).
Até que, em um lindo dia, sem entender muito bem o porquê, a sua mamãe, resolveu mandá-lo para um acampamento de três dias, que acontecia todos os anos, em uma cidade do interior do estado.
O menininho pediu que a sua mamãe relevasse a indelével decisão, mas ela estava firme nos seus propósitos em mandá-lo para Tatuí, com o seu colégio.
O garotinho chorou, ameaçou uma síncope, gritou e ajoelhado, implorou...
Mas, a sua querida mamãe não voltou atrás.
Foram os dois até a escola e após conversarem com um dos coordenadores, ficou decidido que, se o Dieguinho não conseguisse sobreviver por mais de um dia, longe da sua amada família, ele poderia voltar para casa, acompanhado de alguma professora (ele nem desconfiara que aquela promessa era só um paliativo para acalmá-lo).
Depois de uma torturante semana, chega o dia da viagem.
O menininho chega ao local de embarque, acompanhado apenas pela sua mamãe, que logo o coloca no ônibus e desaparece.
Dieguinho já começa a sentir saudades, desde aquele momento e nem as brincadeiras dos monitores o distraem.
Mas, "tudo bem", pois era só chegar no acampamento que ele pediria para voltar.
Viagem tranquila e ao chegar no local, ele recebe uma notícia terrível.
A professora lhe informa que não há sinal de celular naquela área.
Então, como ele poderia conversar com a sua mamãe e pedir para voltar?
Isso gerou cenas dignas de um dramalhão mexicano, com muita paciência por parte de toda a equipe de professores que estavam no acampamento.
Noite terrível, manhã pior ainda.
Mas, na hora do almoço, uma esperança.
O Dieguinho viu um grupo de ônibus e vans que acabaram de chegar no local para buscar alunos de uma outra escola.
Ele sorri e esbanjando simpatia (mas com a sua tradicional carinha de sofrimento), sai perguntando de motorista em motorista se ele poderia pegar uma carona até a capital.
Só desistiu quando percebeu que os motoristas não estavam muito a fim de levá-lo de volta até a sua mamãe e a coordenadora já muito impaciente o recoloca de volta nas atividades.
Atividades, inclusive que, além de o distrairem, na maioria das vezes o assustavam.
Quase teve um ataque cardíaco ao ver o fóssil de um Tiranossauro Rex e ficou paralisado ao ouvir o som de algum bicho enorme no meio do mato (ele nem tinha percebido que o rugido vinha de uma enorme caixa de som).
Em uma pequena trilha que avançava sobre um riacho bem transparente, com água na altura das suas canelas, o Dieguinho percebeu que estava sendo seguido por alguma coisa vermelha.
Quando ele se movimentava, "a coisinha rubra" se movimentava também.
Ao parar, aquilo ficava estático ao seu ladinho.
Frente a aquela situação ele desesperou-se e começou a gritar, saindo correndo pelo minúsculo curso d'água, com o troço avermelhado o acompanhando, na mesma velocidade.
Só acalmou-se ao saber pelo monitor, que aquele ser escarlate que o incomodava, era nada mais, nada menos, que o seu próprio tênis.
E assim, passaram-se os outros dias e o Dieguinho pode voltar para casa.
Aliviado ele vê a sua mamãe na porta do colégio e lhe dá um abraço de urso, daqueles que parecem que não vão acabar nunca mais.
A mamãe deixa-o no carro com o seu irmão mais velho e volta até o ônibus para agradecer aos professores a paciência, o carinho e a atenção com o seu caçulinha.
E, com um sorriso marcante, arremata:
- "No ano que vem, vou mandá-lo de novo..."

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Portunhol

Santa Catarina é um estado que recebe, todos os anos, uma horda de argentinos.
Eles trazem alegria e muito dinheiro para as cidades catarinenses.
É impossível ir até lá, sem encontrar pelo menos uma dúzia deles.
Foi o que aconteceu com a Cidinha.
Acompanhando os seus cunhados mais ricos, viaja de férias para o estado barriga-verde e comparece a todos os bons bares e boates de Florianópolis a Balneário Camburiú.
Recém separada, muito fogosa e com a sua beleza um pouco incompreendida pela maioria dos paulistas, vê naqueles espaços recheados de portenhos, uma chance de conseguir um bom partido estrangeiro.
Com muita esperança sempre se arrumava bem, perfumava-se com uma fragrância cítrica madrilenha e ia para a guerra.
Só tinha um "pequeno probleminha", que cooperava muito para a sua constante retranca: ela não falava patavinas de espanhol.
Por isso, na maioria das vezes, ela evitava iniciar uma conversa com algum "hermano", sempre esperando uma abordagem por parte deles.
Esse pequeno detalhe da língua era praticamente insignificante para Cidinha, já que não a desanimava.
Mas, em um bar bem badaladinho de Jurerê Internacional, ela vê uma grande oportunidade, com um grupo de argentinos conversando com os seus cunhados em um portunhol compreensível.
Feliz da vida, ela ajeita o seu pretinho básico e se dirige até ao grupo.
Acompanha o desenrolar da conversa e percebe um olhar mais atento de um dos portenhos presentes.
Ela se anima e começa a fazer carinha de inteligente, mostrando com o franzir da testa e com sorrisos, que estava acompanhando bem o andar da conversa.
Observando isso, o argentino que se mostrava interessado nela, interrompe o papo e faz uma pergunta longa, em um bom portunhol, diretamente para ela.
Sem entender nadica de nada do que foi perguntado, ela arregala os olhos, levanta a sobrancelha e devolve:
- "Acuma?"
E Deus salve a nossa Didi Mocó Sonrisal Colesterol...

Celsão e a Kombi

Nesse carnaval, dei uma passadinha em Itaúnas, um vilarejo localizado no norte do Espírito Santo, na divisa com o estado da Bahia.
Lugar paradisíaco, que conta com dunas, lindas praias, riachos ótimos para banhos e uma agitação noturna que agrada a todos, com bons forrós.
Tem também uma população agradável, sempre disposta a dois dedinhos de prosa.
No caminho para o Riacho Doce, encontra-se a Pousada do Celsão.
Figuraça, esse cara!
Já chega no carro, descrevendo a qualidade do almoço do local, feito pela Mara, onde o tempero é a nossa fome...
Vale a pena dar uma parada e conferir a grande variedade e fartura da refeição, com peixe, carne de boi, linguiçinha, carneiro guisado, pescoço de peru, entre outras iguarias, onde o tempero não é só a fome, mas a simpatia e a magia do Celsão e das suas histórias.
Uma delas, que me foi contada, relata a epopeia com o seu primeiro carro.
Diz ele, que há uns trinta anos atrás, quando ainda morava em Belo Horizonte, juntou dinheiro e conseguiu comprar uma Kombi, novinha, para tentar iniciar um empreendimento próprio no setor de entregas locais.
Depois de tirar o carro na concessionária, parou em uma padaria para tomar um cafezinho e mostrar a sua nova aquisição aos amigos.
Nisso chegam duas pessoas, que começam a perguntar aos presentes quem era o dono da Kombi. O nosso amigo se identifica e, surpreso, recebe uma proposta para levar uma carga até Cuiabá, no estado de Mato Grosso, naquele mesmo dia.
Desinteressado, ele agradece a oportunidade e nega o carreto.
Mas, com a insitência dos dois estranhos e, principalmente, pela alta quantia oferecida ao nosso bom mineiro, pelo transporte (quase um terço do valor do veículo), não houve como não ceder ao apelo dos dois interlocutores.
O Celsão aceita e vai até um barracão na periferia da cidade e fica esperando uma turma encher a Kombi, com várias caixas de papelão, bem lacradas e sem identificação da mercadoria.
Com o carro cheio, sozinho, ele vai para o distante estado, prometendo entregar a mercadoria no menor tempo possível.
Com um grande medo, mas dependente daquele valor que lhe foi pago, sabia que estava se arriscando em demasia.
Chega dentro do prazo no estado do Centro-oeste e faz a entrega sem saber o que tinha transportado.
Mas, por sorte, acabara de fazer o primeiro serviço com o seu carro novo.
Antes de procurar um hotel para dormir, já que precisava retornar para Minas com muita rapidez, parou em uma padaria para tomar um cafezinho.
Novamente, dois homens se aproximaram e começaram a examinar a Kombi.
Desconfiado, pois estava em uma cidade desconhecida, o Celsão vai até eles, questionando o motivo de tanta curiosidade em relação ao carro.
Os dois ao identificarem o nosso amigo como dono do veículo, fazem uma proposta para comprá-lo, em dinheiro, por um valor que representava quase o dobro do que ele havia pago.
Sem entender muito aquele repentino interesse e, ainda com a cabeça incomodada pela dúvida total do que ele havia transportado até Cuiabá, ele não pensa duas vezes e vende o carro aos dois estranhos.
Os três se dirigem até uma agência do Banco Real e finalizam o negócio, com o depósito do valor combinado, e em dinheiro, na conta dele.
Imediatamente, o Celsão se desloca até o aeroporto e consegue um voo para Brasília e, mais tarde, outro para Belo horizonte.
Ainda sem acreditar no que tinha lhe acontecido, conta a epopeia a uma plateia estupefata, composta de parentes e amigos.
E diante de todos, fez uma promessa: que nunca mais iria comprar outra Kombi.
Hoje, tem uma camionete que, segundo ele, "só faz entrega de gente", de Itaúnas para a sua pousada.
E também dos ingredientes e do tempero do bom almoço da Mara...

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Simpatia

Para o tratamento de doenças, a atitude inteligente é procurar um médico.
Só ele pode diagnosticá-las, prescrevendo os medicamentos corretos para o paciente.
Mas, nem sempre essa obviedade acaba ocorrendo.
Muitas pessoas se julgam especialistas em tudo e como "conhecedoras do seu próprio corpo", acabam usando e abusando da automedicação.
Em alguns casos, chegam até mesmo a receitar remédios para os seus conhecidos: "olha, quando eu tive essa dor de barriga, tomei tantas gotas do medicamento tal e foi tiro e queda..."
Já em outras situações, quando se trata de pessoas mais velhas ou que vivem no interior (pesa também a questão financeira, é claro), aparecem as simpatias.
E o engraçado é que existe simpatia para tudo.
Para criança com bronquite, basta fazer um corte na soleira da porta, da altura exata dela e colocar uns fios de cabelos presos com fita adesiva. Quando o pequeno ultrapassar aquela altura, o mal vai estar curado.
Para cobreiro, uma boa reza é cercar a vermelhidão com tinta de caneta Bic, já é suficiente para impedir o crescimento do mesmo.
Casamento, basta roubar o menino Jesus de Santo Antônio, que a moça arruma marido na certa.
Para descobrir o segredo de alguém, basta beber o restinho da água no mesmo copo que uma pessoa começou a matar a sua sede.
E por aí vai...
Na minha cidade, no interior paulista, quase na divisa com Minas Gerais, ainda hoje é comum o povo buscar nas suas rezas, a diminuição e cura das suas mazelas.
Eu mesmo, desde criança recebi várias benzições e simpatias, pois sempre fui mirradinho e muito doente.
Se hoje não sofro de mau olhado, espinhela caída e quebranto, é graças à minha avó Zilda, uma excelente rezadeira, que ainda continua ativa no seu ofício de olhar pela boa saúde dos filhos e netos (se eu não fosse um celibatário convicto, ela também poderia rezar pelos bisnetos).
De todas as simpatias que eu já fiz ou ouvi, uma que eu tenho até hoje na memória aconteceu com um casal de vizinhos de parede, da casa dessa avó.
Seu Toquinho e dona Maricotinha.
Casal já passando dos quarenta anos de casamento, aposentados e com filhos morando longe, em outras cidades.
Tudo parecia bem tranquilo, quando seu Toquinho, sem motivo aparente parece que se desgostou da vida e começou a beber, frequentando diariamente todos os botecos da rua.
Além de gastar quase toda a sua aposentadoria, chegava muito bêbado em casa, gritando com a esposa, com os vizinhos e, na maioria das vezes, muito sujo e fedido.
A olhos vistos, o povo via um homem outrora exemplar, se definhar.
Dona Maricotinha tentava de tudo.
Muito religiosa, rezava, pedia que o padre conversasse com ele, buscava ajuda com psiquiatras e outros médicos, pedia que os filhos aconselhassem o pai e nada do seu Toquinho parar de beber.
Pelo contrário, quanto mais atitudes tomavam, mais ele se embriagava.
Até que, uma das vizinhas mais antigas, ensinou a dona Maricotinha uma simpatia infalível para o marido parar de beber.
Era necessário comprar uma garrafa de pinga bem vagabunda, tirar o seu rótulo e colocar na garrafa treze penas de urubu.
Isso mesmo encher a cachaça com o negrume etéreo da indefectível ave.
Ela garantiu à esposa do nosso querido bebum, que ele pegaria nojo da bebida e nunca mais voltaria a colocar na boca nenhuma caninha.
Como não restava muita esperança, ela fez direitinho o que a vizinha recomendou e, antes do almoço de domingo, ofereceu um bom copo da "nobre bebida" ao marido.
Seu Toquinho tomou a cachacinha em uma talagada só e repetiu a dose.
Pouco tempo depois sentiu-se um pouco enjoado e foi deitar-se, sem mesmo querer almoçar.
Bom, pelo visto a simpatia deu certo, pois seu Toquinho nunca mais foi no boteco encher a cara.
Agora, fica sempre em casa e pede diariamente para dona Maricotinha mais uma dose daquela "cachacinha dos deuses" que ela conseguiu para ele, naquele domingo...
E haja urubu!

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Jogo de xadrez

A expressão "jogo de xadrez" é bem conhecida do público em geral.
Quando eu a uso, quero mostrar uma situação complicada, com muito estudo para se chegar a uma determinada conclusão.
Também gosto de jogar xadrez.
Faço isso desde pequeno, influenciado por um amigo de infância, filho de um libanês que era dono de uma livraria na minha cidade.
Além dele me ensinar a jogar, também me mostrava livretos com partidas e indecifráveis quebra cabeças sobre o jogo de tabuleiro.
Eu era o seu sparring favorito, mas a persistência me fez evoluir até conseguir vencer o meu mestre em algumas partidas.
Com ele me inscrevi em campeonatos colegiais, chegando até mesmo a ser campeão em equipes, no ano que eu cursei a minha oitava série.
Cresci mais ainda e continuei jogando, me tornando sparring de outros amigos.
No começo da década de noventa, já em Guarulhos, me enturmei com um pessoal que gostava do "bom viver" e também tinha o xadrez como boa opção de desafio.
Eu frequentava muito um bar, no centro da cidade, chamado Taverna, onde reuniam-se os pseudo intelectuais do município, a galera descoladinha, os neo hippies e militantes da esquerda guarulhense.
Em algumas mesas, com um pouco mais de iluminação e mais afastadas da muvuca do bar, eram disponibilizados alguns tabuleiros de xadrez.
Bons papos e bons jogos.
Mas, não pensem que esse ambiente informal trazia alguma informalidade para o jogo.
Pelo contrário, a introspecção e o silêncio próximo a elas era regra inquebrável.
Quase tacitamente as pessoas se comportavam como em algum campeonato do leste europeu.
Eu mesmo, evolui muito naquelas pelejas.
E gostava muito também de ficar estudando os diversos jogos que eram diariamente disputados no Taverna.
Tanto que, em um final de tarde sem ter muito o que fazer, me dirigi ao local para uma boa conversa ou um joguinho despretensioso.
Haviam poucas pessoas lá, nenhuma conhecida, então eu vi dois velhinhos disputando uma partidinha de xadrez, em um surrado tabuleiro.
Fui até eles e fiquei observando.
Minutos se passaram e os dois continuaram atentos ao jogo, erguendo a sobrancelha de vez em quando, enrugando a testa e olhos fixos no tabuleiro, mas sem mexer peça alguma.
Nesse ínterim, eu também atento já tinha planejado diversas jogadas e algumas defesas caso fossem mexidas determinadas peças (tinha um cavalo que poderia trazer problemas a um dos oponentes).
Mais algum tempo se passou e nada de peça mexida.
Comecei a imaginar a veracidade da expressão citada no começo do texto, com provas irrefutáveis do quão complicado é, de fato, o jogo de xadrez.
E nada de movimentos naquele tabuleiro.
Napoleão ao conquistar metade da Europa, talvez tenha gasto menos tempo na sua estratégia.
Mas, os dois não descolavam os olhos da mesa.
Até que um deles, de maneira ríspida, levanta a cabeça, quebra o silêncio e pergunta indignado ao outro:
- "Como é que é, carioca, você não vai jogar não?"
E o oponente, mais indignado ainda:
- "Ué, não é a sua vez?"
Não aguentei!
Fui embora com a ligeira impressão que eles fizeram aquilo, de propósito...

Gol de letra

O futebol é paixão.
Nada de novidade nisso, pois estamos cansados de vivenciar no nosso cotidiano discussões intermináveis sobre esse tema.
Basta ver que ainda sobrevivem aquelas mesas redondas, cheia de comentaristas tendenciosos e muito apaixonados pelos seus times.
No meu trabalho não é diferente.
Depois de um clássico onde o meu tricolor perdeu para um rival, com um gol de letra, quase no final da partida, fui bem lembrado por todos os amigos torcedores de equipes diferentes da minha, do vexame daquela derrota.
Muitas gozações, chacotas e até certa maldade contra a minha letra quase ilegível (me pediram para que eu aprendesse com o jogador do Santos que fez aquele gol).
Raras foram as pessoas que não me sacanearam.
Mas, já envolvido no trabalho, fui fazer uma palestra para os pequenininhos sobre a festa de carnaval, que vai ser realizada no final dessa semana.
Falei das origens do entrudo, dos vários tipos que existem no Brasil, da importância da festa para algumas cidades e encerrei com várias marchinhas tradicionais das décadas de trinta e quarenta.
Ao encerrar a conversa, vem até mim um aluninho do terceiro ano, filho de um amigo e que é santista roxo, me perguntando:
- "Tio, você sabe qual será a minha fantasia no carnaval do colégio?"
Eu, na minha inocência, fiz cara de interrogação e ele tasca, sem dó:
- "De Robinho..."

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Bira

O Bira é um pernambucano boa gente.
Muito falante, cheio de amigos e super solícito.
Onde ele está, o sorriso é farto.
Também é uma pessoa simples. Gargalhando, conta uma história que ele quase comeu o guardanapo do avião, pensando que era tapioca (na sua primeira viagem aérea).
Foi funcionário de um extinto banco público do estado de São Paulo, se transferindo para cá, após o fechamento da agência bancária daquela instituição, em Recife, no final dos anos noventa.
Recife, inclusive, que é a sua terra natal, onde Bira tem muitos amigos.
Dias desses ele foi passar férias na casa dos pais, em Pernambuco, e resolveu pegar uma "corzinha" na Praia de Boa Viagem, aquela que, de vez em quando, um tubarão faz um pequeno lanchinho com algum surfista desavisado.
Temeroso desses ataques, o Bira resolveu ficar bebericando a sua cervejinha, na areia.
Escolheu um local bem tranquilo, ficou ao lado de um carrinho de bebidas, onde um garotinho fazia um churrasquinho bem cheiroso e, assim, o dia foi passando.
Ao seu lado estavam dois estrangeiros, muito alegres e que não paravam de falar, um minuto sequer, provavelmente das belezas naturais e humanas da praia recifense.
Os dois também consumiam bastante na barraquinha onde o Bira se aportara.
Nesse ínterim, o garotinho do churrasco procura o nosso amigo e pede um favor.
Já que ele não falava patavinas de inglês, pediu ao nosso bom pernambucano, que perguntasse aos dois gringos se eles se interessavam por um pouco de farinha.
O Bira ficou meio constrangido, pois mesmo um pouco alto, não gostava muito "dessas coisas ligadas ao tóxico".
Mas, mesmo assim, devido à insistência do garotinho, resolveu arranhar um pouquinho no seu inglês, perguntando baixinho aos dois (sob o olhar atento do menininho).
- "Hei, man! Do you want cocaine?"
O garotinho ao ouvir a palavra "cocaine", deu um vigoroso salto para trás e muito assustado gritou para o Bira:
- "Moço, pelo amor de Deus, não é para oferecer cocaína, não! Era só uma farinha de mandioca para o churrasquinho, que eles acabaram de comprar!"

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Fatalidade

Ambrósio era de fato um sujeito sistemático.
Vivia sozinho nos fundões de um vale escarpado. Por opção própria tinha escolhido aquela vida de quase eremita.
Mas, era extremamente feliz, vivendo longe da insegurança de uma grande cidade e dos olhares maldosos de uma pequena vila.
Cultivava as terras pedregosas do local, com a sabedoria adquirida dos seus antecessores, por isso tinha uma vida, até certo ponto, bem tranquila.
Gostava da sua casa bem arrumada, das tralhas de trabalho bem dispostas na parede do celeiro e dos animais bem tratados.
Nem parecia que morava só e que recebia poucas visitas.
Gostava de Maria Rita, uma viúva também dona de um pequeno sítio nos arredores, só que na parte alta da Serra do Rola Macaco.
Como a vizinha também o olhava com carinho, sempre que podia, ia fazer uma visita respeitosa a ela.
Nunca ia quando ela estava só, só passando pelo local quando os filhos estavam presentes.
Filhos que, por sinal, admiravam e gostavam muito do "seu" Ambrósio.
Num desses domingos frescos de outono, ele resolveu passar parte do dia com a família da vizinha.
Saiu de casa logo cedo e subiu a serra a pé, por um caminho menos perigoso, mas mais longo.
Passou parte do dia com eles, perdendo a noção do tempo.
Ao verificar que já estva tarde, resolveu ir embora, escolhendo um caminho mais curto, que teria que atravessar o vale por uma ponte de madeira, bem precária.
A vizinha preocupada o alertou que com o excesso de tábuas podres, a ponte não aguentava mais do que uma pessoa por vez.
Então, era necessário certificar-se que não haveriam outras pessoas atravessando junto com o senhor Ambrósio.
Despedidas feitas, ele pôs-se a caminhar em direção ao local.
Ao observar atentamente o céu, percebeu que poderia acontecer a ocorrência de chuva no caminho.
Por prevenção, ele voltou à casa da viúva e pediu emprestado um guarda-chuva.
Ao receber o mesmo, voltou mais apressado ainda para o caminho e, ao atravessar a ponte, ela ruiu e seu Ambrósio rolou ribanceira abaixo, para nunca mais ser visto.
Moral da história: "um homem prevenido, vale por dois".

Dia ruim

Tem certos dias, que parece que tudo conspira contra a sorte.
Me lembro bem daquele período de escassez de diversos produtos, que sumiam das prateleiras dos supermercados por conta de um mal fadado plano econômico do governo Sarney (lá pelos idos da década de oitenta).
Geralmente, acontecia com os produtos de primeira necessidade, como óleo de soja, arroz, farinha de trigo, entre outras coisas.
Era necessário fazer um pequeno estoque, quando algum desses itens aparecia nas gôndolas dos mercadinhos.
Como todos tinham a mesma ideia, geralmente gerava muito tumulto, intermináveis filas e um aumento momentâneo de preços, que garantia a quem se predispunha a pagar, a certeza de conseguir o bem de consumo. Em bom português, chegava a haver cobrança de ágio para quem quisesse ter a preferência na compra.
Um dos produtos que mais trouxe problema foi a carne bovina que, devido a baixos preços, sumiu dos açougues.
O governo chegou a confiscar "bois nos pastos".
Parecia aquele trecho de um cordel nordestino onde o fazendeiro se dizia dono do boi e o animal respondia que ele não era dele e sim "do Banco do Brasil".
No caso, os bois eram "do Brasil..."
Como na casa do seu Isaías não se conseguia fazer uma refeição decente, sem ter metade do prato, ocupada por um suculento bife, esse período acabou trazendo muitos problemas para o seu cotidiano.
Com a falta de carne bovina na sua cidade, ele resolveu ir até uma cidadezinha dos arredores, quase na divisa com Minas Gerais, para adquirir o precioso produto.
Ele pegou a sua potente Variant azul, colocou o filho pequeno no banco traseiro, ajeitou a caixa de isopor com uma razoável quantidade de gelo e se pôs na estrada, para percorrer trinta quilômetros em busca de um bom pedaço de contra-filé.
Logo na saída da cidade, o pneu traseiro estourou.
Debaixo daquele sol esturricante do interior paulista, fez a troca do mesmo.
Seria rápido se o macaco não prendesse um dos dedos dele, resultando em um hematoma significativo e gritos dignos de uma premiação de Cannes.
Reestabelecida a ordem, um trânsito infernal fez a viagem de meia hora, em uma esburacada pista simples, durar mais de três horas (havia tombado um caminhão de resina na estrada, causando um "pouquinho" de tumulto).
Mas, haviam chegado no local.
Ao sair do carro para sacar dinheiro no banco (precisava de uma boa quantia), o pai incumbiu o garotinho de olhar o precioso carro.
Com medo de ser assaltado, o filho desceu e trancou minuciosamente todas as portas, abaixando o pino da trava e batendo com força as mesmas (aquele modelo não precisava da chave para fechá-las), com a preocupação de certificar que tinha subido todos os vidros.
Orgulhoso do seu zelo, ele ficou embaixo de uma sete copas, só esperando o seu pai voltar do banco.
Ainda bem que o menino tinha feito isso, pois o local estava muito cheio e o pai demorou bem mais de uma hora na fila do mesmo.
Ao voltar para o carro e perceber que estava totalmente fechado (e bem fechado por sinal), o digno senhor quase teve um ataque cardíaco, pois a chave havia ficado na ignição, fato não percebido pelo menino.
Mais meia hora tentando abrir o carro, com a ajuda de uma multidão de curiosos, o nobre progenitor decidiu deixar a tarefa para depois, já que estava tarde e ainda não tinha chegado à casa de carnes.
Após andar mais um pouco até o açougue, teve uma surpresa, pois a fila estava imensa.
Parecia que a sua cidade inteira tinha pensado a mesma coisa e estava em peso no município vizinho para comprar um filezinho.
Mais uma hora naquela fila, sob o sol de final de tarde, com uma baita fome, já que ambos não haviam almoçado, finalmente chegaram ao balcão.
Um impaciente açougueiro os avisou que parte do estoque já tinha sido vendido e que somente havia "carne de segunda".
O pai se negou a voltar para casa de mãos abanando, então resolveu comprar uma peça de coxão duro, mas com preço de picanha (lembra do ágio).
Já voltando para o carro, bem desanimado, pensando em uma maneira de tentar abri-lo sem que tivesse que arrombá-lo, disse uma das poucas frases do dia, em que não havia palavrões:
- "Bom , pelo menos tudo de ruim que podia acontecer, já aconteceu!"
Então, começou a chover...

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O professor

Timóteo era daqueles professores tradicionais.
Lecionava desde os tempos idos no grupo escolar de um bairro central da cidade.
Muito metódico e correto, sempre fora um defensor da moral e da ordem.
Tinha iniciado a carreira ainda na fase da palmatória, mas se adaptou sem muitas dificuldades às mudanças pedagógicas impostas pelo "correr dos anos".
Era um professor querido, já que estava dando aula para a terceira geração de alunos.
Nos tempos da ditadura foi ferrenho defensor das ideias da tradição, família e propriedade e, nos tempos de democracia, discute se são verdadeiros os benefícios dessa total liberdade de expressão.
Mesmo com essa característica um pouquinho reacionária, não deixava de ser querido, mas tinha uma vontade imensa de interagir melhor com todos.
Próximo da aposentadoria, encarou um desafio único.
Sentindo-se um pouquinho sozinho, pois continuava solteiro e com raros amigos, já cansado de sempre frequentar os mesmos lugares, sem companhia alguma, resolveu dar uma repaginada no seu visual.
Deixou de lado as calças de tergal, sempre engomadas, as camisas de linho, muitas com pequenos remendos nos fundos do colarinho, aquele sapatinho preto de amarrar e, mudou o seu guarda roupa.
Comprou tênis, um jeans de bolsos baixos e lavagem radical, camiseta de marca conhecida, com a foto do Elvis estampada e até um boné de grife de lutador de jiu-jitsu para esconder a sua calvície.
Para verificar o impacto do novo visual, resolveu ir até o centro da cidade para dar uma volta pelo local.
Pegou o ônibus no seu bairro e começou a perceber que as pessoas já haviam notado a diferença, pois o olhavam mais do que sempre ele já tinha visto.
Sentou-se no último banco e se pôs a imaginar como um novo homem.
Quem sabe não conseguiria chamar a atenção de uma jovem senhora, para poder dividir um pouco da sua sabedoria e solidão.
Em uma das paradas do ônibus, viu subir uma mulata de quase dois metros de altura, com um maravilhoso corpo modelado em uma calça tão colada, que parecia ter nascido dentro dela, equilibrando-se em um salto agulha e uma blusinha justíssima.
A moça ao passar na roleta, pelo cobrador, percebe a sua presença e ergue a sobrancelha.
Faz do corredor do coletivo uma passarela e vai caminhando lentamente, com olhar fixo para o Timóteo e, ao se aproximar, abre o sorriso mais lindo do mundo.
Minha nossa, apesar de ser bem mais nova que ele e ter a aparência de rainha da bateria de escola de samba, ela o encarava. Quem sabe, o seu novo visual não tinha mesmo, o repaginado.
Esse novo homem abre também um sorriso receptivo, encantado com tamanha beleza, oferecendo o banco do lado à aquela linda mulher.
Ah, era mesmo o seu dia, pois ela senta ainda sorrindo e, antes de receber alguma cantada ou elogio, tasca de maneira direta:
- "Oi, tio, tá lembrada de mim? Fui sua aluna na quarta série? O senhor tá diferente, hein! Tá aposentado?"

"Timão, todo poderoso timão"

Ontem, fui convidado por um grupo de amigos corintianos para assistir o jogo do time deles contra o Bragantino.
Jogo de uma única torcida, Ronaldo e Roberto Carlos em campo, não pensei duas vezes: aceitiei na hora o convite.
Cheguei bem cedo ao estádio e encontrei de cara, um dos professores.
Resolvemos entrar com muita antecedência, a fim de conseguirmos um bom lugar, nas cadeiras especiais laranjas.
Aos poucos o campo foi enchendo (deu mais de trinta e quatro mil pessoas lá), foram chegando os outros professores e depois de muitos cachorros quentes e guaranás, o juiz apitou o início da partida.
Foi um jogo eletrizante, com gol logo no início, pressão do time adversário, torcida impaciente com alguns jogadores, frisson das organizadas na arquibancada, jogadas bonitas e uma vitória merecida do time da casa.
Choveu muito, muito mesmo, no Pacaembu, um dos estádios mais charmosos que eu conheço.
Saímos muito felizes, muito molhados e apressados, já que a estação de metrô mais próxima ainda exigia uma boa caminhada e o seu horário de fechamento estava próximo.
Dentro do trem, muita conversa sobre futebol, um pouquinho sobre trabalho e a certeza que voltaríamos a algum outro jogo do Timão.
Desceram dois na Sé e o terceiro em Santana.
Segui sozinho para o Tucuruvi.
Nesse caminho solitário até a minha casa, pensei muito naquelas emoções vividas e percebi o quanto importante é, não sermos intolerantes.
Eu não sou corintiano!
Mas, com o coração aberto tive uma noite deliciosa.
Torci pelo time, fiquei chateado quando o Bragantino empatou, sorri quando a torcida sacaneou o meu time, que jogava em outra cidade e estava perdendo, e vibrei muito quando o Corínthians fez o segundo gol.
Notem que, eu continuo torcendo para que o meu time seja campeão, mas vou continuar assistindo as pelejas dos times adversários, que jogam um bonito futebol.
Essa tolerância me permitiu usufruir de momentos felizes ao lado dos meus amigos.
E quantas vezes não conseguimos compartilhar um bom show musical, ao lado de pessoas queridas, pelo simples fato daquele gênero não nos apetecer!
Como a gente poderia se divertir mais, frequentando alguns lugares que não tem muito a ver com o nosso estilo de vida, mas são aqueles onde, algumas pessoas que gostamos, se sentem bem?
Como seria interessante ir a festas de religiões diferentes da nossa, compartilhando uma boa companhia de alguma pessoa querida.
Nesse jogo, do Pacaembu, tinham dois garotos que estavam indo pela primeira vez a um campo de futebol, ver o seu time do coração.
Do lado deles, estava eu, um terceiro garoto, vendo pela primeira vez dois grandes ídolos atuarem lado a lado.
Obrigado meus amigos, por me permitirem compartilhar de tamanha emoção e alegria.
E estou de coração aberto para torcer mais vezes, pelo time de vocês...