quinta-feira, 22 de julho de 2010

Serão

Certa vez, ainda pequeno, fui levado para a empresa em que o meu pai trabalhava, para acompanhá-lo em algumas horas de "serão noturno" para recuperar um pouco do serviço atrasado.
Era uma usina de laticínios, bem conhecida na cidade, e ele trabalhava no escritório dela, cuidando de alguns papéis da contabilidade.
Ele me colocou em uma das mesas do fundo e ficou na dele, datilografando algumas saídas de produto.
Eu peguei uma folha de papel e comecei a desenhar, no alto dos meus oito anos.
Curioso, como qualquer criança, ao vê-lo distraído com as notas fiscais, comecei a mexer na mesa em que eu estava sentado. Peguei na gaveta outras canetas, um lápis borracha, algumas folhas de papel carbono e dois carimbos.
Num deles eu li o nome da pessoa que era a responsável pela mesa em que eu estava acomodado.
E, pasmem, tinha o nome da minha avó materna, que cuidava de mim durante parte dos dias e que, naquele dia, tinha me delatado para a minha mãe de uma travessura que eu tinha cometido, resultando em uma pequena dura.
Mordido com aquela situação, irado com a minha avó, eu não pensei duas vezes: peguei uma das folhas de papel e escrevi os maiores impraupérios que eu já conhecia, usando o nome dela como sujeito que, lembrando, era homônima à dona da escrivaninha em que eu estava.
Raiva destilada, já leve por ter podido colocar em palavras tudo o que eu sentia naquele momento, piquei em pedacinhos miúdos aquela folha de papel e atendi o chamado paterno para ir para casa.
Tudo perfeito, só que eu não tinha percebido um pequeno detalhe: a folha de papel que eu tinha utilizado era um dos carbonos que eu havia retirado da gaveta.
No outro dia, a xará da minha avó ao sentar-se na mesa, quase teve uma síncope ao ler vasto "conteúdo atentatório contra a sua pessoa".
Deu um piti homérico, um escândalo daqueles, que abalou a pacífica estrutura do local.
Os chefes foram chamados, os funcionários foram convocados e antes de qualquer investigação mais minuciosa (ela já tinha acusado uns dois ou três contínuos que não morriam de amores por ela), o meu pai ao se aproximar da mesa, sentenciou de maneira extremamente honesta:
- "Essa é a letra do meu filho, que eu trouxe comigo ontem à noite, depois do expediente!"
Nem precisava escrever que ele foi firmemente repreendido e quase demitido.
Além de muito envergonhado, o meu velho estava muito nervoso e, por sorte, foi parado pela minha mãe antes de me encontrar.
Após ouvir atentamente a história que foi contada para ela, percebi que eu levaria uma surra daquelas.
Casa pequena, eu no quarto sem ter como pular a janela, que estava trancada, ao ouvir o meu nome, não pensei duas vezes: fui correndo para o banheiro e me tranquei lá dentro.
O meu pai batia na porta e me ameaçava, dizendo que, se eu não a abrisse "o coro seria dobrado" (já dá para imaginar o que significa coro, no interior).
De jeito nenhum eu abriria aquela porta.
Aguentaria ali, sentadinho no trono, bebendo água da torneira e rezando, por pelo menos umas duas semanas...
Como ele viu que ameaças não me intimidariam, pegou uma chave reserva na gaveta, que guardava, pois tinha medo que a minha irmã pequena se trancasse no banheiro e não conseguisse sair e colocou na fechadura.
Após esse ato, o que transcorreu foi quase uma comédia de pastelão, pois ele girava a chave para abrir a porta, do lado de fora e eu, do lado de dentro girava no sentido contrário.
Como não daria em nada, caberia somente um acordo mútuo para por fim à aquele impasse.
Após quase duas horas de intransigência e mais calmo, ele me pediu para sair, pois só tínhamos um banheiro na casa e a minha irmãzinha queria usá-lo (de fato, eu percebi o choro dela, do lado de fora).
Para atendê-lo, eu fiz ele me garantir que não me bateria.
Como ele sempre foi um homem de palavra, abri na hora, quando ele assegurou que não me daria uma surra.
Naquela noite, eu apanhei da minha mãe...

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