quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Futebol de roça

Aqui em São Paulo, as pelejas futebolísticas amadoras são chamadas de jogos de várzea.
Esse nome vem do antigos campos de terra, que nas décadas de 20 e 30, se localizavam na várzea do Rio Tietê, onde se jogava o futebolzinho de final de semana, em épocas de pouca chuva, é claro, pois a característica principal dessas áreas é o alagamento provocado pelo rio, nos dias mais chuvosos.
Como no interior não existiam esses campos, o povo chama o bom e tradicional jogo bretão amador, de "futebol de roça", pois a maioria dos campos estavam localizados na área rural.
Na minha cidade não era diferente.
Entre muitas fazendas que possuíam bons times amadores, destacava-se a Fazenda São Luiz.
Ela tinha dois quadros: o de aspirantes (como se fosse um time B, formado pelos "pernas de pau") e os titulares, o time principal do local.
Então, sempre levava-se dois elencos para qualquer jogo na São Luiz: primeiro jogavam os aspirantes e, depois, os titulares.
Nessa fazenda, como em qualquer outra, naqueles tempos, o campo era uma área de pastagem, com duas traves separadas por uma grande extensão, quase do tamanho de um campo oficial, balizadas por uma cerca de arame farpado.
Antes dos jogos, quase sempre realizados no sábado à tarde, a rapaziada passava recolhendo o extrume das vacas que, na semana, pastavam naquele "manto sagrado" e reforçavam com cal, a marcação das quatro linhas.
Em dias mais frios, antes do jogo, a peãozada que compunha o quadro de aspirantes do time da fazenda, bebia uma cachacinha, diretamente no alambique, já que o campo era próximo dele e rodeado de um extenso canavial (em dias quentes, bebia um pouco mais...).
Inclusive, todo becão adorava dar aqueles chutões na bola em direção ao alambique.
Era o único lugar que praticamente o time todo saía correndo para buscar a pelota, sem pedir ajuda aos gandulas!
Em um desses jogos magistrais em que o nosso modesto time participou, naquela fazenda (eu jogava nos aspirantes, é claro), ocorreu um pequeno incidente.
Já chegamos um pouco atrasados, pois o caminhãozinho que sempre levava o nosso esquete, ferveu, e tivemos que esperar bastante até o radiador esfriar para que pudéssemos colocar mais um pouco de água.
Era um Fordinho de frente quadrada, que fazia entregas do supermercado do Waldemar durante a semana e nos sábados carregava pelo menos umas quarenta pessoas entre jogadores, comissão técnica, parte da arbitragem (que era dividida entre o mandante e o visitante), torcida e o massagista (o Purpurina se dizia massoterapeuta, mas nunca ninguém quis que ele colocasse as mãos nas suas pernas...).
Quando desembarcamos, notamos um pouco de animosidade do lado dos nossos adversários, pois como o campo só contava com a iluminação natural, corria-se o risco de acabar a segunda partida, sob os faróis dos carros presentes no local.
Times perfilados, percebemos que eles tinham escalado um dos seus mais famosos zagueiros: o Tonhão.
Ele era um sujeito de uns dois metros, com quase cento e cinquenta quilos, que era peão da fazenda (diziam que ele conseguia segurar um garrote com as mãos para ser marcado). Nem o uniforme cabia nele (parecia que ele vestia um conjuntinho infantil)
Posso dizer que o Tonhão era o pesadelo de qualquer atacante, pois não aceitava nenhuma jogada mais plástica, sem tentar quebrar a perna do sujeito.
E, naquele jogo, o trio de arbitragem seria inteiramente da fazenda.
Jogo iniciado, muito chutão para lá e para cá, um ponta-pé ou outro por parte dos adversários e tudo corria na mais absoluta paz.
Até que o Naldinho, o nosso mais habilidoso jogador, que atuava nos dois quadros (aspirante e titular) resolveu encarar a fera.
Pegou a bola sozinho na ponta esquerda e cortou para o meio do campo.
Nessa passagem o seu marcador passou a ser o Tonhão.
Ele não pensou duas vezes, deu um belo chapéu no animalesco beque, esperou ele chegar bufando e tocou a bola entre as suas pernas, deu meia volta e com um belo chute encobriu o goleiro, marcando um dos mais belos tentos que eu já pude presenciar.
E, ainda por cima, saiu comemorando, imitando um touro bravo.
Aqueles dribles desconcertantes, o belo gol e, principalmente, a tosca comemoração causou um alvoroço dos infernos.
O time inteiro, liderado pelo Tonhão, partiu para cima da gente, distribuindo socos e ponta-pés.
Em menor número, nos dispersamos e corremos para o canavial.
Eu até hoje não sei como passei pelo vão da cerca de arame farpado, sem me machucar (sim, eu era ligeiro naquela época), sendo um dos primeiros a chegar na touceira de cana.
Fiquei escondido por mais ou menos meia hora, até ouvir o barulhinho salvador do nosso caminhãozinho que, ia devagarinho pela estrada, recolhendo o nosso valente time.
Nunca mais tivemos coragem para voltar a jogar na Fazenda São Luiz.
Mas, pelo menos eles nunca mais iriam se deleitar com o nosso "futebol arte"...

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